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Rui Zink
O
bicho da escrita |
Todos os meus
amigos escrevem. Excelente. Todos os meus amigos gostam de escrever.
Formidável. Eu próprio não desgosto de escrever, embora
já não o faça. Escrever é bom. Escrever as palavras.
Escrever as coisas. Escrever o mundo. O mundo dentro de nós. E o mundo
fora de nós. Todos os meus amigos escrevem. Todos os meus amigos são
escritores. Todos os meus amigos fazem livros.
E o pior é que não são só os meus amigos. As
outras pessoas também. Os meus vizinhos escrevem - poemas. O senhor
que entregava as cartas também escreve - livros de viagens, acho.
A empregada do café escreve romances policiais, o funcionário
do banco escreve novelas de amor, o dono da mercearia escreve - romances
históricos. A minha mãe escreve ficção
científica, os meus irmãos escrevem banda desenhada, até
os nossos primos mais afastados escrevem - acho que best-sellers, mas não
tenho a certeza, podem ser apenas ensaios de hermenêutica
neo-visigótica.
Só o meu pai não escreve, porque já morreu. Se estivesse
vivo escrevia de certeza, e até sei o quê - novelas picarescas.
No hospital, todos os doentes escrevem e os médicos que lhes prescrevem
as receitas também escrevem. Da literatura inclusa à literatura
médica, nem mesmos os enfermeiros, os maqueiros, os polícias
de piquete ou os funcionários do balcão de atendimento deixam
de escrever.
Esta situação é preocupante. O governo já anunciou
que irá tomar medidas. Não é de excluir, admitiu o porta-voz
do governo, que seja declarado o estado de emergência. O porta-voz
do governo já não fala - ele próprio foi atingido pela
doença. Eu por acaso li o que escreveu, mas não sei se ele
estava a falar a sério - a escrever a sério - ou se era apenas
mais um capítulo da sua nova (e interessantíssima)
ficção política. Aliás, devo ter sido o único
que o leu ou, vá lá, um dos poucos. Porque deve haver mais
como eu, quero dizer, tenho de partir desse princípio, não?
Convém não confundir o facto de não conhecer mais
ninguém como eu com a assunção, quiçá
precipitada, de não haver mais ninguém como eu.
A doença é altamente contagiante. Faz o Ebola parecer um
vírus de brinquedo, tal a velocidade a que se reproduz e transmite.
O período de incubação dura entre três a seis
horas, findo o qual a vítima, até então uma pessoa normal,
se torna abruptamente num escritor. Os hospitais estão a rebentar
pelas costuras, a abarrotar de gente obcecada pela sua dose de papel e caneta.
E cada vez têm de escrever mais, de aumentar a dose, porque cada vez
têm mais e mais ideias, mais e mais amor à literatura, às
belas palavras, à poesia secreta que se esconde por trás das
belas palavras - mesmo das feias, dizem os casos terminais.
Os cientistas ainda não conseguiram isolar o vírus, ou encontrar
um antídoto, ou mesmo simplesmente identificar a origem da doença,
ou explicar-lhe a natureza, porque
pois, isso mesmo, estão todos
ocupados a escrever. Há pessoas que já definharam e se consumiram
por inanição. Nada de espantar, é até bastante
lógico, embora escabroso: escrevem, não comem, morrem.
Acidentes ocorrem em massa. Os despistes são mais que muitos. Por
toda a cidade se ouvem explosões. Os taxistas vão muito bem
a meter a terceira, lembram-se de uma frase, põem-se a escrever, largam
o volante e
É terrível.
Até as crianças se põem a escrever. As que ainda não
sabem o alfabeto inventam um, ou garatujam bonecos simbólicos, e inventam
histórias, histórias, histórias. Bebés de um
ano, que digo?, de meses, pegam numa caneta, num lápis, e mexem as
mãozitas fechadas para a frente e para trás, com uma habilidade
inaudita. Claro que acabam por rasgar o papel e rabiscar o chão todo
para além das esparsas fronteiras da folha branca, mas não
se importam com isso, continuam sem parar a escrever os símbolos do
mundo. E os pais também não ligam, porque eles próprios
estão ocupados a escrever, e o que é um chão todo rabiscado
em comparação com um brilhante conto infantil onde uma princesa
ajuda um cavaleiro a não se perder na floresta negra onde vai combater
um dragão maligno com a simples dádiva de um dos seus belos
cabelos louros? Hum?
Nunca se viu nada assim. A situação é grave, toma
proporções calamitosas e não há sinais de se
vir a atenuar. Gostaria de o dizer de outra maneira, mas não há
outra maneira de o dizer: o mundo corre o risco de sucumbir ao peso de tantos
romances, contos, ensaios, novelas, poemas. Os poemas, esses então,
são mais que as mães. Odes, elegias, éclogas, adágios,
quadras, redondilhas, dísticos, ditirambos, alexandrinos, pastorais,
quintanilhas, décimas, duodécimas, litotes, sonetos, sonetinos,
sonatinas.
Não estou a ser alarmista. A Terra já saiu ligeiramente da
órbita. E o número de escritores e poetas não pára
de aumentar de dia para dia. E o número de palavras escritas. E de
frases inovadoras: curtas, longas, frases de uma só palavra ("Ele.
Disse. Para. Ela."), frases sem vírgulas durante duzentas páginas
("Não vale a pena dar aqui um exemplo teria de ocupar duzentas
páginas mas esta pequena amostra talvez já sirva para dar uma
ideia ou então o melhor ainda é pelo menos gastar mais meia
linha com esta frase idiota de modo a que a ideia que estava a tentar ser
dada seja mais clara e convincente e acho que agora já chega o exemplo
já está dado acho"), torniquetes e arrebiotes de sintaxe que
uma pessoa não julgaria possíveis ou razoáveis.
Uma pessoa pergunta-se sempre: "Que mais irão eles inventar?". Ou
"Será que ainda há algo para inventar?" Pelo menos era o que
me perguntava antes - antes da epidemia. Pois se há coisa que a
doença veio provar é que as possibilidades de invenção
- e as capacidades humanas de inventar - são inesgotáveis.
É triste, mas é a dura realidade: a imaginação
humana está em contínua expansão, como o universo. A
imaginação humana é como um buraco negro, tudo consome,
tudo devora. E a humanidade corre o risco de se extinguir por causa disso.
Por excesso de imaginação, por excesso de talento, por excesso
de criatividade.
Com franqueza, há um limite para tanta produção
artística e cultural. Ou devia haver, porque, pelos vistos, não
há.
Ainda por cima de qualidade. Sim, porque, quem sou eu para o negar?, as pessoas
não só escrevem como ainda por cima o que escrevem é
bom, é interessante, é válido, merece ser lido, tem
estilo pessoal, vem ocupar um espaço no espaço da literatura
que estava por ocupar porque não sabia, antes de ser ocupado, que
esse espaço existia e era ocupável. Cada pessoa cria o seu
nicho com a mesma avidez e a mesma precisão milimétrica com
que a andorinha constrói o seu ninho. E, se é certo que uma
andorinha não faz a primavera nem um escritor chega para fazer a
literatura, muitas andorinhas juntas, milhares, milhões, biliões
de andorinhas juntas chegam e sobram para fazer à vontade uma caterva
inteira de primaveras: sobretudo daquelas que trazem como brinde gratuito
uma senhora porção de verões, outonos e, claro, invernos.
Esse é que é o busílis.
E esse é também o génio do vírus. Põe
as pessoas a escrever - e a escrever bem. Se lhes desse a vontade, mas não
o talento, ainda era como o outro. Um médico que descobre, ao fim
de centenas de páginas, que se limitou a parodiar Fernando Namora,
pode ainda voltar a exercer medicina, a fazer aquilo para que tem realmente
jeito. Uma advogada que se dê conta de que nem todas podemos ser Agatha
Christie ainda pode ser útil aos seus clientes. Mas que fazer com
um obstetra que faz páginas belíssimas? E com uma causídica
que nos faz ficar na dúvida sobre quem é o criminoso até
ao derradeiro parágrafo? Hum? É triste. É trágico.
É insuportável. Histórias bem arquitectadas, com
indiscutível mestria, personagens credíveis, textos que compreendem
a essência da coisa literária: que não é nas palavras,
mas para além das palavras, que se encontra a beleza do texto.
*
A princípio até houve uma euforia colectiva, os jornais falavam
de um "novo nascimento", os críticos de um "momento ímpar"
da nossa literatura, os poderes públicos da pujança de uma
"nova geração de criadores". Só depois começaram
os pequenos indícios de que poderia haver algo de errado neste surto
de talento, mas ninguém conseguiu - ou quis - ver o que estava a
acontecer. E, verdade seja dita, por essa altura também já
muita gente estava contaminada e começara a escrever, primeiro com
alguma hesitação e sentido de responsabilidade, depois cada
vez mais furiosamente - até ao romance final.
Agora?Agora o mundo é um lugar lúgubre, são tempos
enegrecidos, estes. E o pior é quando chegar o inverno. No verão
ninguém dá por falta das formigas, apenas das cigarras. Mas
quando chega o inverno
Os mercados estão vazios, a
distribuição de pão e outros alimentos básicos
não é feita, o próprio pão não é
feito. As lojas estão vazias, abertas, escancaradas para a rua, mas
vazias. Sem ninguém a guardá-las, sem ninguém nas caixas,
sem ninguém para acender ou apagar as luzes. Nos hipermercados, uma
pessoa pode levar para casa tudo o que quiser nos carrinhos metálicos.
Mas, se não tiver uma moeda, não pode levar nem um carrinho
porque não há onde trocar a moeda.
Há, claro, coisa boas. As televisões deixaram de funcionar.
Acabaram-se as telenovelas, as "novelas da vida real", e a ironia é
que se acabaram precisamente na altura em que se multiplicou por mil o
número de autores de telenovelas. Só que já não
há ninguém para as filmar: actores, operadores de câmara,
maquilhadoras, realizadores, produtoras, assistentes de realização,
equipas de luminotecnia, guarda-roupa, pós-produção
e montagem, estão todos cada um para seu lado a escrever o livro das
suas vidas. Também, seria preciso dizê-lo?, já não
há boletim meteorológico. Receio que aconteça o pior
se os barcos forem para o mar sem saber que mau tempo os espera. Mas
imediatamente me dou conta da parvoíce que acabo de dizer. Já
não há niguém para se fazer ao mar, os pescadores
abandonaram as redes, os arpões, os convés, os iscos, e estão
todos de papel e caneta a descrever relatos de naufrágios, aventuras
com peixes de nome impronunciáveis, palimpsestos de Moby Dick,
versões melhoradas e adaptadas aos tempos modernos da noveleta de
Hemingway, O Velho e o Mar.
Há bocado disse que eu devia ser o único a ter lido o último
comunicado do governo. Depois corrigi e disse que não, talvez não
seja o único. Talvez não seja, de facto, mas até agora
não sei onde estarão os outros, esses outros que ainda não
foram atingidos por esta loucura colectiva, nem se serão como eu ou
se terão eles mesmos sofrido alguma mutação. Não
sei por que motivo fiquei imune ao vírus. Terá a ver com o
meu AND, o meu código genético, com o meu tipo de sangue, com
a insuficiência (ou o excesso) de melanina nos meus poros? Faltam-me
os conhecimentos científicos para o poder dizer sem correr o risco,
impróprio sobretudo nesta ocasião, de cair na ficção
científica ou no delirio fantasista disfarçado de saber
objectivado.
Se não sou a única pessoa no mundo que, neste momento, neste
talvez derradeiro momento da humanidade, lê o que os outros escrevem,
onde estão os meus camaradas de armas? Será possível
reunirmo-nos e criar um bastião de resistência, uma
organização underground que lute contra a epidemia e, através
do estudo, da leitura, da experimentação
teórico-prática, encontre uma solução para devolver
a saúde aos homens e pôr de novo o mundo a funcionar? Não
sei. Confesso que não tenho muita esperança.
Eu sou um leitor. Sei o que sou: leio o que outros escrevem. Faço-o
até compulsivamente. De manhã, ao pequeno-almoço, mesmo
que não tenha um jornal pela frente, as páginas com a tinta
ainda fresca aflorando a chávena de café, os meus olhos percorrem
instintivamente a mesa, à procura de palavras, letras, frases para
ler: "Corn Flakes", "rico em vitaminas e minerais", "Loja 18 - Rua Camilo
Castelo Branco, 15-A", "Planta - margarina vegetal, 250 gramas"
Depois,
à medida que o dia avança, vou lendo tudo: todos os jornais,
todos os anúncios, todos os números de todas as portas, todos
os nomes de todos os médicos na placa da policlínica que fica
na rua pela qual perpasso todos os dias. Leio todos os romances que me passam
pela frente, leio todos os ensaios que consigo ler, todos os poemas que me
passam para a mão quando, à hora do almoço, vou comer
um mini-prato ao balcão da pastelaria do bairro onde fica o meu emprego,
no qual tenho por função ler todos os documentos que colocam
em cima da minha secretária para esse mesmo devido efeito, que é
eu lê-los.
É verdade, não sei por que milagre fiquei imune ao vírus.
E o engraçado é que nem sempre fui assim. Em jovem, eu
próprio tentei escrever. Pode-se lá viver sem ter tentado escrever!
Embora nessa altura, devo dizê-lo, houvesse muito menos gente a escrever.
Eram outros tempos, havia muito analfabetismo, era uma vida de trabalho.
Depois, descobri que preferia ler. Mas antes, confesso, eu próprio
tinha a mania de escrever. Nada especial, acho: uns poemetos, um ou outro
conto, dois ou três esboços de diálogos para teatro.
Mas não vale a pena escondê-lo, eu tinha a mania de que sabia
escrever.
Talvez por isso eu tenha ficado imune, se calhar o meu pecadilho de juventude
- queria ser escritor! - funcionou como vacina. Isso protegeu-me, até
à data, admito, mas não sei até que ponto isto é
uma bênção ou uma maldição. Sou um leitor
num mundo de escritores, e isso faz-me sentir muito sozinho. Porque todos
escrevem - mas ninguém lê o que os outros escrevem. Ninguém
senão eu. Não têm tempo. Estão tão absortos
a contar a sua história, a conceber o seu monumento de
imaginação e arte, que não têm tempo para ler.
Nem é uma questão de ter tempo, é que, simplesmente,
já não conseguem. Não conseguem ler. E, qualquer dia,
já não sabem ler. As línguas assim vão acabar,
ainda antes mesmo do mundo, porque cada um vai cada vez mais e mais escrever
na sua própria língua, no seu código muito pessoal,
esquecendo-se de que a comunicação tem dois sentidos e que,
para se ser compreendido, é preciso partilhar os elementos para essa
compreensão. Não lêem. Só escrevem. Morrem. Tal
é a potência, a perversão demente do vírus.
*
E você? Não sei se existe, caro/a colega de sobrevivência
neste mundo em colapso. Se ler isto, é porque ainda existe, e então
fica a saber que, algures no planeta, talvez mesmo na sua cidade, há
alguém que partilha os seus medos, angústias, mas também
as suas esperanças. E talvez possamos encontrar-nos, era mesmo bom
que trocássemos umas ideias sobre o assunto, para unir esforços,
e procurar outros como nós: leitores imunes ao bicho da escrita. Bem
sei que a sua primeira reacção talvez seja pensar: "Este tipo
está a tentar enrolar-me. Ele próprio é um escritor,
não um leitor de verdade. Ele próprio foi contaminado e está
a tentar fazer-me crer que não, provavelmente com algum fim pouco
honesto."
Está no seu inteiro direito de pensar isso, eu também o pensaria
se me aparecesse pela frente uma história assim. Nós não
somos desconfiados por natureza, mas por cultura - e nunca ninguém
perdeu em desconfiar do vizinho. Razão tinha Kissinger, quando dizia
que até os paranóicos têm inimigos. Peço-lhe apenas
o benefício da dúvida. Peço-lhe? Imploro-lhe. Aqui onde
me vê, estou de joelhos, implorando-lhe que acredite em mim. Isto não
é uma história, isto não é ficção.
Estou apenas, genuinamente, a tentar estabelecer contacto com alguém
que exista do outro lado da página.
Estou a estender-lhe a mão. Por favor, considere a possibilidade de
me estender a sua.
Só mais uma palavra. Não escreva a responder. Bem sei que se
calhar está imune, mas nunca se sabe. Apareça, apenas. Eu saberei
reconhecê-lo/a, e você também me reconhecerá com
facilidade. Seremos os únicos - na praça, no jardim, na rua,
no café, onde quer que nos encontremos - sentados pacatamente, com
um sorriso nos lábios e um livro, aberto, na mão.
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© Rui Zink 2001 |
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Rui Zink: |
Hotel Lusitano. romance
Publicações Europa-América 1987
A Realidade Agora A Cores. contos
Signo 1988
Homens Aranhas. contos
Relógio d'Água 1994
Apocalipse Nau. romance
Europa-América 1996
A Arte Suprema (com Rui Gonçalves).
Editora Asa 1997
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A Espera. novela
Europa-América 1998
>>
A Realidade agora a Cores - Re-mix. contos Pubilcações
Europa-América 1999
O Suplente. romance
Publicações Europa-América
2000
>>
In
deutscher Übersetzung:
Hotel Lusitano.
Übersetzt von Martin Amanshauser.
Deuticke Verlag 1998.
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Apokalüpse Nau.
Übersetzt von Martin Amanshauser.
Deuticke Verlag 1999.
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www.deuticke.at
Ein Interview mit Rui Zink in
www.wellbuilt.at
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Maria Luiza Fontenelle:
sentado também é legal! |
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nova
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Kegler, sternstraße 2, 65719 hofheim /
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