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Paula C. Dassie
O casulo de Luísa


Foi bem aqui que tudo começou. Ainda se podem ver as cinzas espalhadas pelo canteiro. Começou pelo fim? Às vezes é assim mesmo.

Naquele setembro especialmente seco, as flores demoraram a vicejar. Havia areia em alguns potes, noutros conchinhas. Luísa não percebeu quando um deles virou, e de dentro saiu uma preguiçosa lagarta. Preguiçosa, suja e sedenta.

»Ainda existo?«, pensava, enquanto tentava se mover. E se movia como as ondas daquele mar manso. Ela não queria aquele suco que a mãe trouxera, achava azedo. E a gota que escorreu do copo quase afogou a lagarta, quando bateu gorda sobre a mesinha. »Ainda existo?«, fechou os olhos, imóvel. Queria ver como seria a sensação de estar num casulo. Lentamente se enrolara na longa e parda toalha de mesa. Sentiu seu corpo se enrijecer por fora, por causa do casulo. Dentro ficava cada vez mais quente, quieto, abafado, tonto. »Ainda existo?« …

A lagarta alcançou uma ínfima fração da gota de água, e seus pelos coloridos se eriçavam enquanto sugava, se saciava. Agora estaria quase pronta para as flores daquela primavera indecisa. Faltava aprender a voar, mas isso ainda era segredo. Então rastejou. E passou por uma tábua de madeira lisa, por um parafuso novo, por uma pauta – e então foi puxada para cima, deu uma pirueta no ar e caiu novamente sobre a tábua e o parafuso. Rastejou mais. Agora estava confusa: entre fusas e semifusas, não esperava que o mundo pudesse ser tão preto e branco. E de novo foi lançada para cima. Lançou seu fio, e pára-quedou mais além, entregue pelo vento. O chão tecido ondulava.

Só os olhos e o nariz de fora. »Ainda existo?… Quieta!«. No pensamento mais nada. Porque uma lagarta não pensa. O cheiro de queimado fez com que Luísa revirasse os olhos, procurando. Mas as lagartas não devem falar, por isso permaneceu muda. Viu a mãe com lágrimas nos olhos (de novo). Viu uma (outra) fogueira no jardim. Viu duas (novas) caixas de papelão, fartas de lembranças. Viu como as lembranças viram passado (e depois remorso), e viu a música queimar. Mas as lagartas não entendem o que vêem, porque não pensam. E assim se entregou novamente às sensações. Era o mar que dizia ao longe: »vai passar, tudo vai passar…«; era o Sol que esquentava as folhas. E era o fogo que queimava as páginas, e eram as lágrimas que queriam esquecer. Seus olhos se fecharam como seus lábios ocultos.

Ondulante, a lagarta quis saber daquele calor, que não era Sol nem fogo.

Algo fez seu coração disparar. Era aflição, urgência.

E o chão ficou tão macio…

Não quis gritar, porque as lagartas não falam.

Agora sentia fome.

Um grito rasgou a tarde, quebrou a voz dos passarinhos, fez as lágrimas serem enxutas. Luísa ondulava agora como mar furioso, e tentava se desenrolar da parda e longa toalha de mesa. Sentia seu pescoço queimar (porque existia). A mãe a desenrolou, que idéia é essa minha filha?, e foi logo buscar a pomada no banheiro maior.

Por sorte, a lagarta, que se enroscara nos cabelos de Luísa, foi arremessada para perto da fogueira em brasas. Perto, mas a salvo. Onde havia um canteiro, regado ainda hoje, e cheio de brotos. Um canteiro de aprender a voar, depois do longo sono que viria em breve.

À tardinha, o vento morno espalhou as cinzas.


  © Paula C. Dassie
22.06.2011


Nasci em São Paulo, em 30 de junho de 1975. Sou uma verdadeira apaixonada pela Língua Portuguesa, e desde sempre escrevo contos, poemas, crônicas e ensaios. O site Nova Cultura é a primeira opotunidade que tenho de apresentar um texto meu ao público. Sou formada em Comunicação Social pela Faap, e estudei Pedagogia Waldorf, desktop publishing, design gráfico e webdesign. Trabalhei até 2007 como editora de livros, revisora, tradutora e cotejadora (alemão e inglês para o português), capista, designer gráfica, fotógrafa, ilustradora e pré-impressora. Fui responsável por mais de 30 publicações, entre livros e periódicos, tais como »A Arte de Educar« e »Curso de Pedagogia Curativa«, ambos de Rudolf Steiner, lançados pela FEWB. Moro desde então na Alemanha, e atualmente trabalho em três projetos literários pessoais, ainda inéditos.