21.11.2008
Pequena Apresentação de Lima Barreto
Urariano Mota
Afonso Henriques de Lima Barreto, 13/51881 – 1/11/1922. Melhor dizendo: Lima Barreto, 13/5/1881, ainda vivo, e melhor que ainda, para todo o sempre. A apresentação de um escritor poderia ter essa brevidade. Isso bastava. Os amantes e necessitados de humanidade que procurassem o escritor nos seus escritos. Isso bastaria.
Mas o que dizer de um mestiço, ressentido, alcoólatra, louco a ponto de ser por duas vezes em sanatório internado, biografado, retalhado como o primeiro e último dos carentes de um conforto burguês? O que dizer de um indivíduo humilhado, e por isso magoado, e por se sentir magoado, ainda mais humilhado? Sim, perguntaria o leitor, o que dizer de um homem assim, que sofre como quase toda a humanidade, da Espanha à Palestina, da África ao México, do Brasil ao Japão? - Que isto é uma injustiça, que isto é injusto, que isto não deve ser o destino de um homem. E com tal resposta passaríamos a questões mais políticas, filosóficas e gerais. Mas o que dizer, ainda, da “natureza histórico-universal da crítica entranhada, das relações inter-humanas, da dialética do negativo, das contradições trágicas que dilaceram a sociedade...”, o que dizer? – Que isto é um discurso de vocábulos-conceitos que lembram, nos vocábulos, o marxismo. E assim respondido, poderíamos sair para bem longe do caso singular de um, de um ... do quê, de quem mesmo estávamos falando?
O bom leitor a esta altura deve estar com o pressentimento de que muita urtiga e mato impedem o avanço do nosso caminhar. Tratemos primeiro de arrancar as ervas daninhas que já trouxemos conosco antes de entrar nessa mata escura. A primeira delas é arrancar desta quase apresentação todo didatismo óbvio. A segunda delas é retirar da massa de informações tudo que não sirva claro a este artigo. A terceira delas, talvez a mais importante, é jogar fora o temor às autoridades que nos antecederam. Vale dizer, e com isto entramos na selva escura, é brigar com a tradição, com a crítica que se escreveu e se escreve sobre Lima Barreto. Ao final, veremos se muito erramos, perdidos da boa via.
A Francisco de Assis Barbosa, o maior biógrafo de Afonso Henriques de Lima Barreto, todos devemos uma apaixonada pesquisa, o levantamento e publicação da obra de Lima. Mas fazer justiça é o contrário do fechar os olhos a tudo: a Francisco de Assis também devemos um olhar caridoso, pio, sobre o mártir Lima Barreto. Francisco de Assis foi o santo pesquisador que viu em Lima o ressentido, o ofendido, o magoado, o desgraçado mulato cuja obra era uma toalha onde imprimiu uma face de sangue. E não sabemos se tão grande foi a sua pesquisa que marcou a visão da posteridade sobre o escritor ou se o preconceito da sua visão é o da sociedade, tão velho, tão Brasil, tão presente. Num acordo sensato, digamos que as duas coisas: o seu trabalho de pesquisador é de uma força tal que imprime a cara do biógrafo, quando queria ser a do biografado, e pela aceitação que recebeu e recebe, imprime a própria cara da sociedade brasileira. Isto quer apenas dizer, não se vê na revolta de um ofendido uma revolta que saia da própria pele. Pelo contrário: “você se revolta, se indigna apenas porque está sendo oprimido”, ou seja, “no dia em que você chegar lá, no dia em estiver no poder, será mais um opressor”. É claro que nada disso se escreve no trabalho de Francisco de Assis, mas nele está inscrito, por força e conseqüência. Entenda-se, ninguém pode ser biógrafo de Lima com a omissão do sofrimento da pessoa do escritor. Mas a ênfase no “ressentimento”, na ferida, na “tragédia” de ser mulato numa sociedade hipócrita, mestiça por espírito e carne, é mais que uma redução: é um erro, e que erro!
Vejam, por favor, o autor de contos essenciais, cheios de graça e verve e feroz humor, como O homem que sabia javanês, como A nova Califórnia, o romancista de Triste fim de Policarpo Quaresma, prescinde de abordagens cheias de dó e pena. Um indivíduo que escreve a gema rara desse pensamento sobre uma personagem, sobre Olga, que “tinha a alma tão ao alcance dela mesma”, está muitos e muitos pontos acima de um coitado infeliz. E se se quiser, se não se abre mão da insistência em sua infelicidade, se não se recua nem da ida a seus diários íntimos, vejamos:
“A loucura em si é uma grandiosa e sagrada desgraça, e não a quero em mim assessorada senão pela sincera piedade dos que me estimaram por mim mesmo.
Respeitem a minha desgraça, se, de fato, eu vier um dia a cair nela! E, espero com muita fé, que se tal acontecer, não será inteiramente total, para que não possa eu tomar o caminho da sepultura dos vivos que é também a sepultura dos sonhos dos que não quiserem se esquecer dos outros, nem nos dias fastos nem nos nefastos, apesar de terem podido conseguir a falsa felicidade dos vulgares...”. Ou ainda:
“Digo com franqueza, cem anos que viva eu, nunca poderá apagar-me da minha memória essas humilhações que sofri. Não por elas mesmo, que pouco valem; mas pela convicção que me trouxeram de que esta vida não vale nada, todas as posições falham e todas as precauções para um grande futuro são vãs... A minha pena só me pode dar dinheiro escrevendo banalidades para revistas de segunda ordem. Eu me envergonho e me aborreço de empregar, na minha idade, a minha inteligência em tais futilidades. Ainda tenho alguma verve para a tarefa do dia a dia: mas tudo me leva para pensamentos mais profundos, mais doridos e uma vontade de penetrar no mistério da minha alma e do Universo”.
Que diferença do homem ressentido, do indivíduo que reclama por inveja! Prefere-se antes, nas visões dos santos piedosos, o desabafo “é triste não ser branco”, do diário do escritor em 24/1/1908, e daí, em lugar da crítica ao tratamento que a população de pele escura recebe na sociedade brasileira, ressalta-se mais particularmente a mágoa de um mulato infeliz. Por que desse modo, dessa redução, não se fala do próprio Machado de Assis? Por que este não é o caso de Mário de Andrade? Por que este não é também o caminho seguido pelos russos para o gênio de Pushkin? Não temos ainda robusta certeza, mas acreditamos que a razão venha de Lima Barreto ser um escritor de um tipo novo na atrasada sociedade do Brasil. Ele é de um gênero, que mal nasceu e é caçado para ser extinto, de escritor que não recua de entrar em luta contra os desmandos e desconcertos do mundo brasileiro. Queremos dizer, do escritor que não recua diante do abismo, ainda que isto lhe custe a sobrevivência física. Como ele assim ousava, isto somente poderia vir, conclui-se, de um ressentido, de um alcoólatra, de um louco: o que vale dizer, na sociedade dos bem-nascidos, ou dos que conseguiram ir a esse nível por educação, do intelecto e dos olhos, que se puseram míopes e turvos, nesta sociedade, diz-se, a olhar para o escritor intransigente e inflexível: “Ele não é um dos nossos . Afastemo-nos, ou seremos a próxima vítima”.
No Brasil, ele tem sido um indicador, um termômetro de tempos de luta e de consolidação democrática. Quando surge uma ditadura, e nesses tempos a poesia, a literatura, adquire um derivativo de militância, a sua literatura sobe à cena, e sobe de tal maneira que apaga e ofusca todas as outras criações, de um gênero diverso da sua. Assim foi na ditadura militar, na década de 70. Opunha-se a criação de Lima à de Machado de Assis, e com isto, sabemos a distância, não se dignificava nem se compreendia o próprio Lima. O coitado da história tradicional se transformava então no herói, e o encanto e a força da literatura se perdiam, porque iam buscar nela um fuzil, um tanque, uma bomba, um míssil – exigiam dela o impossível, porque de um gênero e batalha diversa. Em lugar dos punhos de renda, do nefelibatismo, buscavam-se então meras armas, em vez de almas. É nessa altura que Lima Barreto é um outro, porque sofre uma nova interpretação: o escritor João Antonio, dentre outros escritores de valor, faz dele um modelo de marginalidade, e mais uma vez passa-se ao largo da sua criação – a fonte fundamental são os diários. É nessa altura ainda que Lima Barreto sofre uma visão mais sofisticada, sob a pena de Carlos Nelson Coutinho: em lugar da interpretação da obra mesma, de Lima, vemos conceitos exteriores, que se põem sobre os escritos como um paletó que não se ajusta bem ao corpo. Ou dizendo de outra maneira, conceitos que de tão largos e universais se poriam nos corpos de Semprun, de Graciliano Ramos, de Dostoievski, ou de Pushkin. E melhor prova não há que a percepção de algo datado, que não resiste a uma releitura, como resiste, com o mesmo frescor, a releitura de Lukács em críticas iluminantes, como a feita ao Goethe de Os Anos de Aprendizado de Wilhelm Meister. (Devemos ter pecado aqui na aproximação, de Lima a Goethe, de Carlos Nelson a Lukács, mas contamos com a paciência do leitor inteligente, que sempre nos desculpa a pressa.)
Em tempos de vigência da democracia, ou de demência, Lima tende a não ser lembrado. É como se a luta, por ser outra, por não ser mais a da tomada do poder pelas armas, dispensasse o gênero de escritor necessário e novo que ele é. Sem cair nos nefelibatas, ou para usar uma palavra que não perdeu a vida, sem cair na alienação, o embate se dirige a outros pontos, como se a necessidade de oxigênio fosse outra. Vivemos no Brasil de hoje uma literatura, ou dizendo mais próprio nome, uma Coisa grosseira, que reproduz a barbárie de todos os dias, das ruas, como uma imitação chapada, que melhor fruição estética teria se sujasse as mãos do leitor com sangue, infectado de vírus, para melhor eloqüência. Busca-se na literatura mais uma vez o que ela não pode dar. Buscam-se happenings, festas, shows, exibições, marketing e choques, o chocar as pessoas como instrumento de propaganda. É como se a antiga repressão do sentimento da gente fosse substituído pela exibição pública do uso do WC em tempos democráticos. E mais uma vez Lima Barreto, o autor que falou dos oprimidos sem paternalismo, que ironizou os poderosos sem qualquer conciliação, é esquecido. Mas é dele, para todo o sempre, o maior e melhor galardão de um escritor digno desse nome. Em seu enterro, um homem chegou perto do caixão, descobriu-lhe o rosto, e beijou-lhe a testa. A família de Lima quis saber então quem ele era. E ouviu:
- Eu não sou ninguém, minha senhora. Sou apenas um homem que leu e amou esse grande amigo dos desgraçados.
Admitamos, como único prêmio, que exista para um escritor uma nova vida. Admitamos, somente para concluir que ao ouvir isto Lima Barreto sorriu.
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