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21.11.2008

Viagens e inter-viagens
os novos voos poéticos de Ivo Machado

Ivo Machado: Quilómetro Zero

Ivo Machado:
Quilómetro Zero.

100 páginas
Editora Exodus 2008

INTER-VIAGENS

 

No comboio direcção a Lisboa, uma mulher

– humilde, tem a idade no rosto de rosa encarnada –

acordou-me para vender Queijadinhas de Coimbraa

e Pasteis de Tentúgal. E de repente,

de Norte para o Sul,

o que alcanço

não é o que a mulher traz no cesto,

o que alcanço

não é o cenário através da janela em movimento,

nem sequer os rumos das grandes questões da Poesia;

não pergunto onde começa, ou acaba

a nossa melancolia como Povo,

onde principia a viagem

sem saída que me traz dentro de um poema.

O que alcanço é o nada,

ou assim me parece

 

Quilómetro Zero (Ed. Exodus 2008)

o mais recente livro de Ivo Machado marca, para mim, uma nova fase na obra do poeta que em 2007 festejou 25 anos de actividade poética com a antologia Poemas Fora de Casa (Exodus 2006).

Na época eu disse acerca desta colectânea: »A poesia de Ivo Machado sabe voar, e é ao mesmo tempo fortemente enraizada. No quintal da sua infância ela nos demonstra quanto universo cabe num figo ou numa laranja … E ao mesmo tempo a sua poesia é uma constante reflexão sobre o dever, o poder, a razão de ser da palavra.«

Em seu recente livro o poeta está longe de abandonar este posicionamento, mas consegue sim radicaliza-lo, substituindo o voo épico por miniaturas minuciosas à vezes, e a viagem interior (pela memória) por viagens do presente, o abstracto por um autobiografismo doloroso, em que se inspiram novos voos, ainda mais existenciais, mais enraizados – mais radicais no sentido da palavra.

Sete dos 38 poemas preciosos deste livro formam os »Poemas do Convento«, escritos durante uma clausura, em 2007, numa fase extremamente marcante na vida do poeta: Uma experiência de recolhimento e recuperação pessoal e mental, cujos efeitos se fazem sentir claramente em cada um dos poemas – incluindo o título: »Quilómetro Zero«.

Mas não fosse Ivo Machado o poeta que é, se da experiência existencial (e dos momentos autobiográficos) não fizesse um jogo espiritual, poético, fundamentalmente sério e ao mesmo tempo extremamente optimista:

Pesa a carne, curva-me

o cansaço de sonhar. Sou um homem

dobrado até ao solo

pela ingente necessidade de repousar.

Pesa me a alma

 

(..)

 

Como posso escrever que a alma pesa

quando num retrato,

uma camélia branca sorri?

 

(Electrocardialma, p. 85/86)

Michael Kegler