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Felipe Tadeu [15.01.2009]

Fred Martins: Eterna Guanabara

Fred Martins. Foto: Felipe Tadeu 2009

O cantor e compositor Fred Martins está lançando nesse começo de 2009 um novo disco, intitulado »Guanabara«, uma explícita declaração de amor à bossa nova, o estilo musical surgido à beira da Baía que deu nome ao estado federal extinto pela ditadura militar.

A Guanabara de Fred Martins é um lugar onde se pratica a delicadeza. Onde há músicas que falam de amor sem resquício de pieguice, sem a agressividade de melodias pueris. É como se fosse um enclave atemporal traçado pela memória dos seres mais lúcidos, estes que sobrevivem à desfiguração monstruosa que se impõe à natureza e à gente do Rio de Janeiro, e não se rendem.

Nas treze faixas do disco, o artista nascido e criado em Niterói, RJ, optou por arranjos fidelíssimos ao que há de melhor na escola bossa-novista. Nada de concessões às supostas modernidades, nem tampouco uso exagerado de brinquedos tecnológicos. É a velha bossa, nua e crua, composta por Fred Martins e seus parceiros habituais: Marcelo Diniz, Manoel Gomes, Francisco Bosco (filho de João Bosco) e Fred Girauta.

»Guanabara« é mais uma confirmação de que Fred Martins é um compositor de caligrafia própria, que joga dentre os melhores surgidos no Rio na última década. Um autor que canta bem, e que convence pela sua autenticidade. Um cara que já compôs obras-primas como »Raro e Comum« (com Marcelo Diniz), »Noite de São João« (um poema musicado de Fernando Pessoa) e »Além do Qualquer« (com Manoel Gomes). Motivos de sobra portanto, para que fôssemos conversar com ele.

Você está lançando neste começo de 2009 »Guanabara«, quarto título de tua discografia. Qual é o conceito desse teu novo trabalho?

Fred Martins – Tem um autor que me fala muito forte que é Borges. Ele tem um conto chamado »Pierre Menard, Autor del Quijote«, onde ele coloca a questão da autoria, a concepção dele de autor. Para ele, a obra vem na frente do autor. Tem uma direção meio zen, inclusive com um texto sobre o budismo, com uma tendência de afirmar o coletivo e menos o autoral, o individual. No texto, ele leva essa questão ao extremo, à última conseqüência. »Pierre Menard« é um texto bem fundamental de Borges, que é um autor cujo textos eu tenho contato há muitos anos. Ele sempre está presente nos meus trabalhos, e no »Guanabara« eu acho que vem forte essa história do Pierre Menard, de alguém que abraça uma obra alheia e a tenta fazer dele mesmo. Pierre tem o projeto de reescrever »Don Quijote« de Cervantes, palavra por palavra, mas de uma forma autêntica. Isso é uma coisa que eu acho que a gente encontra aqui no Brasil em Dorival Caymmi, ele que buscava ser anônimo, que queria ter as músicas cantadas pelo povo, como se o povo se esquecesse de quem as fez, como se fossem cantos ancestrais que sempre existiram. Essa idéia do »sempre existiu« é uma coisa que me encanta, porque a canção em geral tem um pouco disso, dela ter sempre existido. A bossa é um gênero que me marcou desde cedo, e foi o primeiro impacto musical que tive quando eu estava saindo da infância, e que me levou a fazer música. Ao escutar João Gilberto em voz e violão no rádio, eu gravei aquilo e fiquei ouvindo para sempre. Uma música muito despojada de grandiloqüência, uma coisa muito intimista, elegante, discreta, mas de uma riqueza incrível. João Gilberto também tem isso, daí as pessoas o chamarem de monge, né? Esse meu disco é voltado para esse despojamento, é uma certa abertura de mim mesmo.

O fato de você gravar esse trabalho de olho no mercado estrangeiro também te instigou a adotar esse postura de reverência à bossa?

Eu acho que se o disco fosse só para o Brasil, também seria dessa maneira. Você vê nos meus primeiros trabalhos, nos discos »Janelas« e »Raro e Comum«, que eles buscam um alinhamento com uma tendência mundial forte, norteada pelo rock inglês e pelo norte-americano, com uso de tecnologia misturado com o acústico, desde a gravação até a mixagem. Agora eu acho que isso ficou uma coisa tão hegemônica, que todo mundo está buscando, que eu queria mesmo chamar a atenção para o outro lado. Eu não queria que as pessoas ouvissem o meu trabalho ligadas só no timbre. O principal são as composições, é uma postura mais clássica mesmo. Acho que a gente não pode abandonar o que a gente conquistou no Brasil com relação à composição. Isso é único. Outro dia, vi um programa na TVE onde só tinham japoneses falando sobre a música brasileira, e teve uma cantora que falou tudo em quatro frases, com a maior clareza. Perguntaram a ela por que gostava da música do Brasil e ela disse que era porque era uma música riquíssima, que tem toda a tradição da música européia, da música romântica até o impressionismo de Ravel e Debussy, mas tem também a rítmica africana. Essa junção, tão bem amalgamada, não há em nenhum outro lugar. Isso foi tentado inclusive na Europa, mas aqui no Brasil foi muito orgânico. É daqui mesmo, da nossa história.

Em 2008 o mundo comemorou o cinquentenário da bossa nova. Foi tua opção lançar o »Guanabara« em 2009, ou houve algum atraso?

Foi casual. Era uma idéia de 2006, mas aí aconteceu a história de’u ter ganho o prêmio Visa no final do ano, e eu mergulhei no projeto do dvd (N.d R. »Tempo Afora«, que rendeu também um cd homônimo). O tempo de gravação do dvd até o lançamento foi longo, muito mais do que eu planejei. Houve vários problemas de edição, de sincronização, e o dvd só foi lançado em janeiro de 2008. Aí o »Guanabara« acabou ficando para 2009.

No repertório deste teu novo disco você voltou a incluir »Doceamargo«, faixa que já havia saído no álbum e no próprio dvd »Tempo Afora«. Por que?

Essa música é também um capítulo da bossa nova, o dos afro-sambas de Baden Powell e Vinícius de Moraes. O »Guanabara« é um disco de bossa, mas não só dela. Eu vejo a bossa como algo que se desdobrou muito, chegando até à música pop mundial. Logo depois que a bossa se instituiu, chegaram os afro-sambas  dos anos 60, e eles são de certa forma uma evolução dela. »Doceamargo« (Fred Martins/ Marcelo Diniz) é uma homenagem a Baden e Vinícius, que aparece mais no final do »Guanabara«, que fecha com »Por Um Fio« (Fred Martins/ Marcelo Diniz), esta uma coisa meio Nordeste. Um Nordeste pós bossa, uma harmonia que não é muito usual na chamada música regional. O Edu Lobo trabalha muito com isso, Chico Buarque também, assim como Tom Jobim também fazia. São desdobramentos da bossa nova. Há faixas que estão mais para o samba, como »“Breve Primavera« (Fred Martins/ Marcelo Diniz/ Fred Girauta) e »Olhos em Chamas« (Fred Martins/Manoel Gomes), onde o desenvolvimento melódico lembra uma coisa que vejo muito na obra do Paulinho da Viola, do Cartola e do Nelson Cavaquinho. O próprio Paulinho fala que ele não passou impune por João Gilberto. Creio que o mundo do samba também não tenha passado. Você pega o samba que João Bosco fazia nos anos 70, e ele também é muito bossa, tanto que João Gilberto um pouco que abraça Bosco como se fosse uma espécie de filho. O samba não foi o mesmo depois da bossa.

Uma de tuas composições mais bonitas é a música que você fez sobre poema de Fernando Pessoa, »Noite de São João«. Você conhece a criação que Vitor Ramil também fez para os mesmos versos do poeta português?

Muitos anos depois de’u ter feito a minha, um amigo veio me mostrar a música do Vitor. A minha é antiga, foi um exercício de composição do tempo em que eu tinha aula com Koellreuter. Eu tinha que pegar um texto clássico e fazer um moteto com aquelas técnicas de duas, três vozes.

É curioso que, enquanto Vítor Ramil colocou nos créditos do encarte do disco dele, (»Ramilonga – A Estética do Frio«), que o poema é de Fernando Pessoa, você optou por publicar Alberto Caeiro - um dos heterônimos do escritor lusitano -, como parceiro.

Você percebeu bem isso. Tem a ver com aquela primeira coisa que falei, de valorizar a obra, em detrimento da vida de uma pessoa, que é o criador, esse mito romântico do artista. O Fernando Pessoa diz o que pra gente no poema? Que ele não é dono daquilo. O poeta está de fora, né?

Fale mais sobre as aulas que você teve com Hans-Joachim Koellreuter, alemão que foi o primeiro professor de música de Antônio Carlos Jobim.

O curso que eu fiz era na casa dele, na Urca. Ele dividia o tempo dele entre o Rio de Janeiro e São Paulo, acho que ele dava aula também na USP – Universidade de São Paulo. Nós tínhamos aulas de quinze em quinze dias, ele passava uma semana aqui, a outra lá, em São Paulo. Foi durante três anos, numa época em que eu acho que já estava começando a escrever songbooks (NdR: Fred trabalhou durante anos para a prestigiada Lumiar Editora, de Almir Chediak, escrevendo partituras dos cancioneiros de compositores como Chico Buarque, Djavan, Rita Lee, Cazuza, Caetano Veloso dentre outros).

Ele te ensinava muita coisa sobre as vanguardas européias, ou eram estudos mais centrados no contexto brasileiro, já que ele vivia há muito tempo no Brasil?

A minha percepção dele é que ele era muito alemão! Ele era muito identificado com as filosofias, com o ideário das vanguardas. Ele nunca abandonou isso, inclusive ele era comunista ainda, tinha um discurso assim um pouco engraçado, defasado, acho eu. Koellreuter tinha uma relação direta com a Alemanha, ía todo ano para lá, ficava alguns meses estudando, se atualizando. A matriz dele mesmo até o fim da vida foi essa linguagem da vanguarda européia erudita. Ele tinha uma visão da música popular como uma coisa menor, uma »curtição«, que era bem o termo que ele usava, e dava o exemplo do artista de carnaval, do sambista. Para ele, a verdadeira arte é aquela que vai criar novas fronteiras, que vai quebrar com a tradição. Eu não concordo, acho isso completamente anacrônico, mas foi muito rico para mim ter estudado com ele. O que ele trabalhava mais era a formação clássica dele. Eu não cheguei a entrar nessa composição de vanguarda, de ruídos. Aliás, isso eu já conhecia antes de procurar o Koellreuter, e não o procurei por isso, não.

O que foi que te motivou a chegar até ele?

Foi mais por saber que ele tinha dado aula pro Tom. Eu pensei, puxa, se ele deu aula para o Tom Jobim e o Tom é o que é, então deve ter algo ali! Ele foi professor de muita gente legal da música erudita como Edino Krieger, Guerra Peixe e tal. Houve uma vez uma situação engraçada, quando ele disse numa aula que o Tom Jobim era muito desorganizado, e que não rendeu muito, não. Disse que se o Tom tivesse estudado, a obra dele teria valido a pena. A gente ficou revoltado (risos). Foi muito legal ter estudado com ele, e aprender o que ele pôde passar para mim.

Você chegava a mostrar tuas composições para ele?

O espaço que eu tinha para mostrar era no exercício da aula. Ele estava mais ligado era no novo gênio da música erudita que iria aparecer. E dava aula mais para ganhar uma grana, sabe (risos)? Para ele, nós éramos uma cambada de gente velha, e eu tinha 19, 20 anos.

Até quando você freqüentou a Urca?

Até o início dos anos 90. Mas para não dizer que ele não gostava de nada, ele amou a minha  »Noite de São João«. Ele ficou assim, encantadíssimo, e isso foi importante para mim. Ele disse que eu era um compositor.

Por que uma música como »Além do Qualquer« ainda não entrou em nenhum disco teu, só no dvd »Tempo Afora«?

Porque é uma música muito recente, ainda não deu tempo de gravá-la em estúdio. Essas músicas que você destaca são bem intimistas. Dentro do meu repertório não são as músicas que as pessoas mais gostam.

Você se considera um autor que canta? Você ficaria triste se compusesse apenas para outros intépretes?

Sim. Eu sou completamente desligado da cultura da diva, do cantor, do intérprete. Por tudo o que eu falei nessa entrevista, essa cultura tende ao equívoco. São poucos intérpretes que eu conheço que »não pesam a mão«. Eu gosto por exemplo de Nelson Cavaquinho cantando as músicas dele, mais do que os outros. Eu gosto de Bob Dylan, de João Gilberto, que também não têm uma voz incrível. É uma maneira de mostrar a música não virtuosística, típica daquelas vozes limpinhas, trabalhadíssimas. Eu acho Elis Regina legal, mas nunca foi minha cantora predileta. Eu gosto muito mais da Nara Leão. E a pior coisa que apareceu nos últimos anos foi essa cultura de cantor com vozeirão, fazendo “aquela coisa” americana. Isso é muito cafona. As interpretações que faço para as minhas músicas são as que têm que ser feitas, e não acho que deva algo a nenhum desses cantores que gravam. Mas fico muito feliz quando eles pegam e gravam minhas canções, porque o que há de melhor para o compositor é quando os outros o gravam.

Então você não abre mão de cantar?

Não, porque eu acho que tenho a idéia clara da música e consigo realizar. Essa cultura de leigo, da diva, da pompa, do excesso é antiqüíssimo, está na pré-história da música brasileira, em Vicente Celestino, em Francisco Alves. A gente já virou essa página há muitos anos, mas isso infelizmente ainda continua movendo o gosto popular. É isso que está dando o tom no Brasil de hoje, de cantoras de vozeirão cantando baladas italianas! Ana Carolina é o símbolo disso e tem outras 400 fazendo igual. E as rádios só tocam isso. É um retrocesso imenso.

Vocé é grande admirador do samba, cultua gente como Paulinho da Viola, Cartola e Chico Buarque. E o rock, nunca te pegou pelo pé?

Dylan é muito forte, assim como Beatles, Stones e Hendrix. Tem até uma música no »Tempo Afora« que é dedicada ao Jimi, a »Amor...« (Fred Martins/Marcelo Diniz), apesar de’u não ter escrito isso no disco. Mas voltando a essa questão do vozeirão: Zuza Homem de Mello estava contando para mim outro dia que, nos festivais dos anos 60, os compositores não cantavam no começo. Nem Paulinho da Viola, nem Caetano, nem Gil, ninguém. Até que um dia, Nara ía cantar sozinha »A Banda« (NdR. No II Festival da Música Popular Brasileira, da TV Record, em 1966), e houve algum problema de som, e o cara que hoje faz novela para a Globo, o Manoel Carlos, teve uma sacada de botar o Chico Buarque para cantar. Aí deu super certo! A partir dali, todos os autores começaram a cantar. E já aconteceu também num festival (NdR. I Bienal do Samba, da TV Record, em 1968), de uma música importantíssima como »Coisas do Mundo, Minha Nega«, do Paulinho da Viola, passar em branco por causa da interpretação equivocada do Jair Rodrigues. Ele não pegou o espírito da música e ela passou em branco no festival. Se fosse o Paulinho cantando, o impacto seria outro.

- Leia também as participações de Felipe Tadeu no blog Palavras ao Vento, aqui no nosso site.
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