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O violoncelo e a cuíca:
Jaques Morelembaum

Entrevista a Felipe Tadeu

Morelembaum Trio | Foto: Felipe TadeuO violoncelista Jaques Morelembaum foi um dos ilustres convidados do Cello Festival, evento realizado na cidade de Kronberg em setembro de 2009. Organizado pela prestigiada  Kronberg Academy, uma instituição de renome internacional criada em 1993 que forma jovens solistas dos quatro cantos do mundo, o festival foi uma bela e oportuna vitrine para que Jaques Morelembaum e seus acompanhantes Lula Galvão, no violão, e o percussionista Rafael Barata mostrassem mais uma vez, porque o Brasil é referência indiscutível em termos de tradição musical.

Diante de uma platéia de cerca de 300 espectadores que lotaram a sala de acústica perfeita, o Cello Samba Trio usou e abusou do carisma que a bossa nova tem junto aos europeus, para perfilar um repertório que privilegiou diversos temas consagrados por João Gilberto. Numa noite que teve como ponto-alto »Receita de Samba«, de Jacob do Bandolim, passando também pelo Egberto Gismonti de »Salvador«, »Coração Vagabundo« de Caetano Veloso e »Ar Livre«, composta pelo próprio Morelembaum, o trio brasileiro fez valer a máxima, pondo abaixo as barreiras que dividem erudito e popular. E tudo já começou nos primeiros acordes de Jaques, mal o instrumentista barbudo chegou aos palcos: o som que saiu de seu violoncelo era mesmo de uma subversiva cuíca.

No dia seguinte à apresentação, Jaques Morelembaum prestou esta generosa entrevista:  

Como foi que surgiu essa ideia inusitada de fazer do violoncelo o protagonista de um trio de samba?

Jaques Morelembaum – O celo é uma constante na minha vida desde os meus doze anos, sendo que a paixão vem até de antes. Meu pai (Henrique) sempre trabalhou regendo orquestras. Ele trabalhava no Teatro Municipal do Rio de Janeiro e eu sempre estava ligado nos instrumentos sinfônicos, começando a desenvolver a paixão pelo celo. Venho me dedicando à música popular brasileira e, entre os grandes mestres que tenho seguido, eu tenho um carinho especial e uma admiração enorme por João Gilberto. Tem um disco dele, de capa branca, que leva o próprio nome dele (álbum de 1973), que me encanta bastante pela singeleza, pela maneira como ele consegue preencher tantos espaços emocionais e ser tão completo. O disco inteiro é só de voz, violão e uma percussão levíssima, que nem é bateria. Sempre me identifiquei muito com este disco, que eu sempre ouvi, imaginando o violoncelo no lugar da voz. A tecitura da voz masculina de João Gilberto é muito similar a do celo.

No espetáculo que você realizou aqui em Kronberg boa parte das músicas era mesmo do repertório de João. Teve »Retrato em Branco e Preto«, »Eu Vim da Bahia«, »Tim-tim por Tim-tim«, »Samba de Uma Nota Só«, »Pra que Discutir com Madame«. É a chamada fidelidade partidária, certo?

Sim, e ao mesmo tempo, como músico brasileiro filho de imigrantes – meus avós nasceram na Europa, meu pai na Polônia e os pais da minha mãe (Sarah) na Rússia –, sempre houve da minha parte uma vontade muito grande de encontrar a minha identificação cultural brasileira, carioca. Eu acho que o samba tem o papel de sintetizar a música genuína brasileira como um todo. Claro que existem milhões de estilos de música desenvolvidos e recriados no Brasil, mas o samba é a forma mais abrangente. »Samba« é uma marca emblemática no mundo todo. Ao mesmo tempo, não gosto muito das limitações, das fronteiras extremamente desenhadas. Eu acredito muito na troca de informações e sou mesmo um produto disso, da transgressão de todas as fronteiras,

Você saberia identificar com alguma precisão quando foi que se deu o clique na tua cabeça, de que teu caminho seria pela música popular, e não pelo universo erudito, que era a tendência familiar?

Foi a música folclórica. Eu falo folclórica, por ser a música que vem do povo. Ela é a grande inspiração dos músicos tanto populares, como eruditos. Se você pegar as obras de Bartók, de Stravinski, de Brahms, você vai encontrar as raízes populares, dos cânticos de rua, dos cânticos das lavadeiras, das festas populares e tal. Falei música folclórica pela ausência de fronteiras, dessa troca incessante de informações, que é justamente o que dá esse aspecto universalista à música, da riqueza toda que ela nos apresenta.

A ausência de fronteiras para você era tanta, que você deu teus primeiros passos profissionais numa banda de rock, A Barca do Sol. Como foi que você subiu a bordo desse grupo?

Essa história vem de antes de’u começar a estudar violoncelo. Na verdade, eu entrei na música popular através do rock. Eu sou nascido em 1954, e quando os Beatles chegaram no Brasil, eu tinha dez anos de idade. E me tornei logo um beatlemaníaco de carteirinha. Muito antes de’u me aproximar da música brasileira, eu me aproximei dos Beatles e do rock como um todo. O advento dos Beatles era irrecusável, era uma arte muito agradável, especialmente aos ouvidos de um adolescente como eu. Logo depois dos primeiros trabalhos dos Beatles, com o fortalecimento da figura de George Martin (produtor do grupo britânico), eu me identifiquei muito pela utilização que eles faziam dos instrumentos sinfônicos, que era um universo completamente familiar para mim. A canção »Elenor Rigby« e aquele quarteto de cordas, com o violoncelo ali, tão na frente! Sempre tive interesse pelos arranjos, pela composição e orquestração. A partir da minha aproximação com a música pop é que eu comecei a me chegar para a bossa nova e para a música brasileira mais sofisticada que se fazia.

Foi através de Egberto Gismonti que você passou a fazer parte de A Barca do Sol?

Sim, eu conheci a Barca por causa do Egberto, que dava um curso de férias em Curitiba, para onde eu tinha ido estudar violoncelo. Chegando lá, soube que havia um curso de música popular ministrado por Dori Caymmi e pelo Egberto. O pessoal da Barca do Sol, que era um trio que já existia, com Nando Carneiro e os irmãos Muri e Marcelo Costa, tinha ido para Curitiba a convite de Egberto Gismonti, que tinha uma relação familiar com os Carneiro, pois era parceiro do poeta Geraldo, irmão do Nando. Chegando em Curitiba, eu abandonei o curso de celo e me encantei logo pelo trabalho desse trio. Quando voltamos ao Rio de Janeiro, eu já estava completamente mergulhado nesse universo.

A minha geração era primordialmente ligada aos Beatles e, de tabelinha, ao Clube da Esquina, de Milton Nascimento, músicos que também tinham uma influência beatlemaníaca muito grande. E o que eu trouxe de contribuição para A Barca do Sol foi pela natureza do meu instrumento, dele ser sinfônico. Pela minha necessidade vital de escrever arranjos, construir contrapontos e de trazer esse enriquecimento das harmonias, das orquestrações.

Você trabalhou cinco anos junto com a Academia de Danças, de Egberto Gismonti. Que recordações você tem dessa época?

Tenho lembranças maravilhosas de desafios fantásticos que me fizeram evoluir bastante no meu conceito musical, tanto na parte técnica, quanto na composicional. O Egberto é um gênio, é um instrumentista de extrema capacidade. A cabeça dele anda lá na frente e, para tocar com ele, tem que chegar junto. Tocar a música dele foi um desafio muito degustativo para nós. Além disso, Egberto tinha na área de composição uma identificação muito grande com Villa-Lobos, com essa inclinação dele de olhar para a música brasileira e filtrá-la do jeito dele. Isso era muito estimulante.

Mais tarde você veio ter o privilégio de trabalhar também com outro monstro sagrado brasileiro: Tom Jobim. Você participou da Banda Nova dele durante dez anos. Poderíamos dizer que com Egberto você obteve maior aprimoramento musical do intelecto, enquanto que a convivência com Tom Jobim te tocava mais no plano emocional?

Eu acho que não. Com Egberto Gismonti eu tive experiência no campo da música instrumental. Realmente tocar com ele me fez evoluir tecnicamente, suas composições me abriram bastante a cabeça para um ponto-de-vista musical voltado para a improvisação. Mas isso não no estilo jazzístico, e sim de maneira genuinamente brasileira. Por outro lado, a convivência com o Tom me ensinou tanto em termos de construção harmônica. É um outro parâmetro, mas a profundidade musical é tão fantástica! O talento de Tom para fazer coisas belas com poucos elementos era tão grande, que isso também ampliou bastante o meu universo musical.

Além de Egberto e Tom, você pode se orgulhar de ter trabalhado com grandes astros da música internacional como Sting, Henri Salvador, David Byrne, Ryuchi Sakamoto, Cesária Évora e tantos outros. Concorda no entanto que foi com Caetano Veloso que você conseguiu dar maior transparência à tua arte?

Caetano tem um público bastante grande no mundo todo, mas cada um desses nomes que você citou tem seu público específico. Caetano Veloso me deu realmente uma oportunidade, que eu não tinha tido ainda, de produzir e arranjar álbuns inteiros. No meu segundo trabalho com ele, no disco »Fina Estampa« (1994), nós trabalhamos com uma coletânea de músicas em espanhol que eram queridas dele quando jovem, e Caetano me deu liberdade total para criar as orquestrações, a parte dos arranjos. »Fina Estampa« é realmente um disco muito querido por grande parte dos amantes da música e isso ampliou bastante a minha possibilidade de ser conhecido no mundo.

Foi depois do »Fina Estampa« que você começou a ser chamado para trabalhar com artistas latinos como os portugueses do Madredeus, Dulce Pontes e Mariza, vindo até a ser chamado para atuar na película »Hable con Ella«, de Pedro Almodóvar…

De todos os artistas brasileiros de que a gente falou, Caetano Veloso é o mais pop. Foi isso que abriu os olhos do pessoal de fora.

Antes do »Fina Estampa« você já tinha atuado ao lado do artista baiano em »Circuladô« (1991). Em termos de espetáculo, »Circuladô« foi ainda mais impressionante que »Fina Estampa«, não acha? Há quem pense que »Circuladô« é o melhor show da história de Caetano Veloso.

Isso é bastante difícil de avaliar. Eu tenho uma predileção muito grande pelo »Noites do Norte«, assim como pelo »Fina Estampa«, que também me deu um prazer enorme de fazer. Nós trabalhamos com uma orquestra de cordas e oito sopros, uma mini-sinfônica. Não sei, cada show tem sua história, e todos os espetáculos de Caetano são muito bem pensados e trabalhados. Ele tem um esquema empresarial que permite a ele fazer o mesmo show durante dois anos, e com isso a gente vai se aprimorando a cada concerto. Caetano tem uma visão de espetáculo que o leva a ver tudo como um ritual, que vai se repetindo e se aprimorando com o tempo.

Tenho realmente lembranças fantásticas também de »Circuladô«, principalmente porque foi o primeiro show que eu fiz com ele. E esse show era especial para ele, porque Caetano estava comemorando 50 anos. Era uma retrospectiva da carreira dele. Caetano pinçou para o repertório músicas que vinha cantando há mais de vinte anos, não é? Mas outro dia, um amigo meu me chamou para assistir o filme do »Noites do Norte«, que também é um espetáculo conceitual, e eu me encantei muito pela surpreendente qualidade musical.

Voltando ao seminal Tom Jobim: um ano após a morte do »maestro soberano« você e  Paula Morelembaum, tua esposa, se juntaram a Paulo e Daniel Jobim para formar o Quarteto Jobim Morelembaum. O grupo só lançou um disco. Vocês pretendem dar continuidade a esse trabalho?

Lançamos este disco em 1999 e continuamos tocando juntos até 2004. De lá para cá surgiram outros projetos para mim, há a carreira-solo de Paula Morelembaum, Paulo Jobim andou ocupado com outros afazeres, e a gente acabou deixando o projeto de lado. Os Jobim gravaram com Milton Nascimento (N.d.R: o elogiado »Novas Bossas«, do ano passado, que além de Daniel e Paulo Jobim trazia Paulo Braga como baterista do trio), eu e Paula gravamos também com Sakamoto. Eu tocava com o Sakamoto num projeto pessoal dele, e no meio dessa história surgiu a ideia de gravarmos Tom Jobim. Acabou saindo três discos, sendo que um deles só no Japão, do M2S – Morelembaum 2 Sakamoto. São trabalhos muito queridos por nós, e esse nosso trio durou cinco anos. Agora estou fazendo música para cinema, e o Cello Samba Trio também seguirá em frente. Venho adiando a gravação de um disco do Cello Samba Trio há alguns anos, mas como estou planejando uma turnê pela Europa em 2011, quero gravar esse trabalho ano que vem, de forma que possa trazê-lo para cá antes do giro.
 

Felipe Tadeu        
29.10.09