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Felipe Tadeu é jornalista especializado em música brasileira, produtor do programa radiofônico Radar Brasil (Rádio Darmstadt). Radicado na Alemanha desde 91, o autor é também conhecido como DJ Fila. Na novacultura assina a coluna »o som do brasil«


 

 

A visita da família Gismonti

Egberto e seu filho Alexandre fazem noite comovente no Enjoy Jazz Festival.

Felipe Tadeu, 12.11.2009

Mannheim é uma cidade esquisita, sombria. Quase feíssima, tem o astral de urbe sitiada pela indústria, principalmente pelo complexo abissal que formam as instalações da BASF ali ao lado, em Ludwigshafen. Não bastasse isso, serviu ainda de base estratégica norte-americana durante a chamada guerra fria.

Meu amigo Hans-Jürgen me contou que foram eles, os yankees, que teriam levantado os abomináveis elevados à entrada do povoado. Imagine só o drama: pegue o Viaduto dos Marinheiros, ali no mangue, na área central do Rio de Janeiro, e multiplique por cinco, com ponte para tudo que é lado, uma saindo de dentro da outra. Rampas de concreto bestiais, que parecem não levar a lugar algum, a não ser ao desespero dos habitantes.

Mas em Mannheim pulsa a vida na cultura. No Teatro Nacional, fui assistir ano retrasado uma montagem inesquecível de "Os Bandidos", de Schiller, pelo grupo Usyna Uzona, o Oficina do magistral arruaceiro Zé Celso Martinez Correa. E em outubro agora, outro evento do mais puro encantamento, com o show de Egberto Gismonti no festival Enjoy Jazz de 2009.

Fazia muito tempo que Egberto não vinha tocar por aqui. A última vez que o tinha visto no palco foi na Alte Oper de Frankfurt, acho que em 1993, num espetáculo do qual faziam parte também Hermeto Pascoal & Grupo, mais Marlui Miranda.

Portanto, era a hora e a vez de Felipe Matraga zarpar de novo rumo a Mannheim para rever o gênio do Carmo dedilhar seu violão de dez cordas, e curtí-lo se balançando todo sapeca ao piano, ele, o cigano de touca de crochê que adorna a cabeleira revoltosa. Um da minha tribo desde sempre.

Fui para a Universidade de Mannheim, local da apresentação, que nem o Gustavo vai para as festinhas de aniversário de sua tchurma. Serelepe, cheio de pique. Aliás, a ECM Records - minha amada gravadora dos nossos tempos loucos do Grajaú -, estava mesmo soprando velas pelos quarenta anos de existência. Egberto e Alexandre Gismonti estavam escalados como atrações da prestigiada série "Som Azul" do festival, organizada pela própria ECM. Chiques, esses brasileiros!



Eu e Hans-Jürgen (que também é jornalista) chegamos em cima da hora na Universidade, mas deu para eu voar até o bar dos estudantes e pegar duas cervejas antes de entrar na sala de viagens onde se realizaria a apresentação. A ECM se fazia orgulhosa do acervo que tem, exibindo em seu estande de vendas aqueles cd's que fazem fama no mundo todo. Por dez euros, podiam ser levados para casa discos que íam do "Return to Forever" de Chick Corea ao álbum gravado por Keith Jarrett em Colônia, o maior clássico da história da gravadora de Manfred Eicher, um disco que me foi apresentado pelo primo Cláudio Roberto Cordovil lá nos idos dos 80.

Claro que a grande maioria dos cd's ali expostos era totalmente desconhecida por mim. A ECM sempre se caracterizou por lançar o insondável substancial, daí não me avexar com minha santa ignorância. Mas estavam lá também disquinhos digitais da maluca da Meredith Monk, de Miroslav Vitous, muitos de Jan Garbarek e outros tantos de Ralph Towner e do Codona e de Pat Metheny, pérolas que conhecia com alguma intimidade.

Aí chegou a hora do povo entrar na sala, não deixando poltrona livre. As luzes se apagaram e pouco depois entraram os dois, pai e filho, que nem eu e o Gustavo, só que muito mais talentosos. Atacando nos violões, a dupla saiu desfiando um novelo de composições extraordinárias da lavra gismontina, interpretando muitas faixas do segundo disco do álbum duplo "Saudades", que foi lançado pela ECM este ano. Um repertório tão bonito, que o parabéns parecia ser para mim.



Alexandre Gismonti era curioso: estava muito compenetrado, o que me parecia natural para quem fica ao lado de Egberto sobre o tablado. Dividir a cena com o exímio instrumentista não deve ser sopa nem mesmo para o filho do cara. Visualmente, os dois são quase que antagônicos no vestir. Alexandre poderia convencer perfeitamennte como habilidoso matemático. Sóbrio, super sóbrio, enquanto que o pai é a perfeita encarnação dos espíritos mais inconformistas e abnegados.

O público estava generoso durante o concerto e a dupla devolveu a gentileza, privilegiando composições consagradas e cativantes como "Infância", por exemplo. Observando os dois sem pestanejar, eu tentava imaginar a emoção que Egberto deveria estar sentindo por estar abrindo espaço no cenário internacional para o filho. E isso na Alemanha, país que lhe é tão significativo na carreira.

Até que Egberto toma uma atitude de extrema e sutil beleza, ao sair do palco e deixar Alexandre ali sozinho, para que tocasse justamente aquela que é talvez a sua maior obra-prima: "Palhaço (Mais Clara, Mais Crua)", composta com Geraldo Carneiro. Era o legado máximo do pai, oferecido a seu menino.

Egberto Gismonti, Foto: Felipe Tadeu

Ao voltar à cena, depois de Alexandre ter dado provas do quanto está preparado para brilhar também como solista, o pai vai direto para o piano e dueta com Alexandre, soltando a transcedental "A Fala da Paixão", trocando olhares com o pupilo. A música como o bem maior. Herança.

Egberto Gismonti, Foto: Felipe Tadeu



O pai Egberto tinha olhos d'água, e eu ali, vendo tudo isso. Que sorte, a minha.

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