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Urariano Mota, escritor e jornalista, nascido em 1950 em Água Fria, subúrbio da zona norte de Recife, onde vive. Publicou Os Corações Futuristas, Japaranduba, 49 e Soledad no Recife. Desde 2003 colabora na novacultura, na secção »literatrip« e com textos críticos. É autor do blog Sapoti da Japaranduba

 

conversando com Canhoto da Paraíba

O milagre da arte que sobrevive nas piores condições. No domingo em que o visito, Canhoto da Paraíba está com 81 anos, sentado em uma cadeira, como sempre está durante 16 horas, todos os dias …

Urariano Mota, 28.11.2007

Com os artistas fundamentais, com as pessoas mais velhas, conversar é mais escutar e ouvir. Canhoto da Paraíba preenche essas duas condições. Conversar com ele é mais escutá-lo. Mas com um câmbio de significado. Escutar Canhoto da Paraíba, hoje, é um exercício que vai além da audição, porque atinge todos os sentidos. Temos que usar a vista, o olfato, o tato, o gosto de estar com a sua pessoa, e, mais adiante, utilizar um sentido que não está entre os cinco que aprendemos desde a primeira escola. Temos que observá-lo como quem nada observa, para que ele não se recolha envergonhado de ser a pessoa que é.

No domingo em que o visito, Canhoto da Paraíba está com 81 anos, sentado em uma cadeira, como sempre está durante 16 horas, todos os dias. Depois de um Acidente Vascular Cerebral, ele fala com dificuldade e baixo. Abrevia palavras, corta sílabas. Por isso mais atento ainda devemos estar à sua pessoa. Em 17.6.2007, reencontro Canhoto três anos mais velho, três anos mais enfraquecido, na mesma cadeira em que o vi há três anos. Parece que ele não saiu do lugar desde a última vez. Vou a sua casa como portador de um regalo, como um mensageiro para a boa nova de uma caixa bonita com os CDs Vale dos Tambores, do compositor e intérprete Carlos Henrique Machado. Ele me recebe no terraço, mais uma vez.

Descubro que ele agora vê mal por somente uma das vistas. Mas que importa? Canhoto é um homem que tem mania de felicidade. Se há indivíduos que têm prazer no sofrimento, a de Canhoto é sorrir, procurar o sorriso, buscar a felicidade. Ele sofre, claro, ele percebe o sofrimento, é evidente, mas isso não o leva ao desespero, nunca, jamais. Por exemplo, nesse domingo, quando estou em sua casa, carrego comigo meia garrafa de uísque, para beber enquanto ouço os choros de Carlos Henrique Machado. Então eu peço à sua filha Vitória um copo com gelo. Que faz Canhoto? Pede um também, porque deseja me acompanhar na bebida. Eu fico muito feliz com isso, ter Canhoto comigo em uma bebida, a ouvir choros no bandolim... quanta esperança. Vitória, filha, secretária, enfermeira e companheira repõe a nossa alegria no quintal da realidade.

- Ele não pode beber, por causa do remédio. Ele toma Gardenal.

Então eu, o caridoso – e a caridade se confunde com a crueldade em mais de uma rima – levo o meu copo de uísque a seu nariz, para que ele, se não pode beber, pelo menos sinta o aroma do álcool com gelo no domingo. Pero ele tem gripe e as narinas repletas de vick vaporub. O frustrado, acreditem, sou eu. Canhoto, não, ele foi do desejo de me acompanhar à paciência de viver com o que é possível. E por isso, para não afrontá-lo com a minha grande saúde, enquanto não chegue também a minha hora de não mais beber, nunca mais, em qualquer domingo, bebo menos, somente três doses, em respeito a seu estado. E assim melhor posso ver e observar a sua pessoa.

Aos primeiros acordes do choro Canto dos Quilombos ele sorri. Melhor dizendo, sorri, não, ele põe um sorriso que não volta a se fechar nos lábios. Então entra o cavaquinho, então vem o bandolim, então acompanham violões. Para quê? Como é que se pode ser infeliz a ouvir uma composição dessas? Não sei se descobri a pólvora, mas Canhoto é feliz porque é um homem musical. Ele retira do som o remédio para a desgraça. Porque a sorrir ele se põe a balançar a cabeça também, a dizer e a se repetir “sim” em silêncio. Então eu sei e sinto que ele está liberto. Ele não está mais naquela cadeira, ou melhor, estando sentado nela, a cadeira é um objeto de profundo conforto. É como estar na dor e integrar a dor em algo maior, em outro lugar, onde a própria dor não tem razão, como expressou Paulinho da Viola. Então ele comenta, baixinho, à sua maneira, mas com um ar no rosto que não admite outra frase:

- Como tem gente boa no Brasil.

É fato. Agora é a minha vez de ficar balançando a cabeça. Vêm outros choros, até chegar na composição Catira. E ele, esquecido do nome do artista que ouve:

- É João Pernambuco?

Não, Canhoto, é Carlos Henrique Machado, eu lhe respondo.

Sei e sinto que ele não me vê, não mais pela ausência de visão, mas porque a ausência de luz é para ele um elemento para sua viagem. E ele está mais do que certo, isso não é uma ilusão, um escapismo, como qualquer idiota de manual poderia escrever. Isso é típico da arte, qualquer arte. Fazer do circunstancial um elemento de composição, sempre. Na dor, na alegria, na felicidade, no sofrimento, no riso, na raiva - tudo é matéria para a expressão. Isso não é ser cruel, isso não é ser perverso. É do gênero, é da natureza.

Mas essas bobagens que eu acabo de escrever, no calor do que me vem, do que percebo agora, ele sabe, sem conceito cerebral, seco, estéril, ele sabe porque sente, a balançar a cabeça e a sorrir. Impossibilitado que está de ele mesmo executar a beleza, com as suas gordas e canhotas e generosas mãos – porque esse homem é todo esquerdo, agora sinto, o que nele é destro é apenas auxílio para o outro lado -, ele passa compor de outra maneira, enquanto acompanha os movimentos do choro. Então eu percebo que Canhoto está tocando! Acreditem, porque eu vi Canhoto a executar o violão, apesar do AVC, apesar do estado em que se encontra, ele continua a tocar. Como? – Ele estava com uma das pernas cruzada, posta sobre o joelho. Com a mão esquerda, imóvel, repousada em um braço da cadeira, com a direita ele marcava posições de acompanhamento na tíbia, no tornozelo!!! Essas coisas a gente vê e deve olhar para o outro lado em sinal de respeito. Mas é insopitável, é irreprimível. Ver as notas a correr com o polegar, com o médio, o indicador, em marcações imaginárias em uma tíbia que se transformou em braço de violão. Eu bebo e me calo. Baixo a cabeça.

E silencio ali, como silencio aqui. O mais que escrever será inútil.

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