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Felipe Tadeu é jornalista especializado em música brasileira, produtor do programa radiofônico Radar Brasil (Rádio Darmstadt). Radicado na Alemanha desde 91, o autor é também conhecido como DJ Fila. Na novacultura assina a coluna »o som do brasil«


 

 

Discografia fora-de-série

O melhor da música brasileira, em lp's de puro encantamento.


Felipe Tadeu, 06.08.2009

Dando prosseguimento aos textos que escrevi sobre discos antológicos da MPB para o site Jornal Musical:

João Gilberto - "Amoroso"




O nono disco da carreira de João Gilberto é o documento definitivo da genialidade do excêntrico cantor, violonista e compositor baiano que formatou a redentora bossa-nova. Gravado nos Estados Unidos com arranjos e regência do alemão Claus Ogermann, tido por muitos como o arranjador estrangeiro que melhor compreendera a bossa-nova, “Amoroso” é de uma generosidade ímpar em termos de sofisticação, um trabalho que chegou a entusiasmar até o próprio João quando de seu lançamento.

Dos oito temas recriados pelo artista baiano em voz-e-violão de complexidade zen, quatro são de autoria de Antônio Carlos Jobim, companheiro de primeira hora da vanguarda carioca, outro ícone brasileiro consagrado nos States. “Zíngaro”, mais conhecida como “Retrato em Branco e Preto”, a melhor parceria de Tom e Chico Buarque de todos os tempos, aparece ao lado de “Wave”, clássico de Tom que Chico marcou bobeira de não letrar talvez por não querer ser (mais) rico.

No disco, João Gilberto consegue a proeza de cantar em quatro idiomas (em inglês, espanhol , italiano e na língua materna), sem perder sua dicção característica, emblemática. Dos irmãos Gershwin de “S’Wonderful” ao bolero magistral de “Besame Mucho” do mexicano Consuelo Velázquez, passando pela dolência ensolarada de “Estate” dos italianos Martino e Brighetti, e de “Tintim por Tintim” de Haroldo Barbosa e Geraldo Jaques, o repertório é simplesmente perfeito para João Gilberto deitar e rolar. Com ele, música é assim.

Chico Science & Nação Zumbi - "Da Lama ao Caos"



O disco de estréia de Chico Science e Nação Zumbi é um álbum que comove os inconformados desde o primeiro segundo. É o discurso direto e destravado do som, que serve de base às inspiradas letras do franzino Francisco França, o Chico, ou de Zero Quatro, seu colega do mundo livre s.a. “Da Lama ao Caos” era pra ter sido produzido por Arto Lindsay, que não respondeu aos chamados da banda, vindo a ser “substituído” por Liminha, indicado pela major que os acolhera. Azar de Arto. Formada por ex-percussionistas da Lamento Negro, que militava na mesma causa do samba-reggae do Olodum, e contando com Jorge du Peixe e um guitarrista arisco, Lúcio Maia, vidrado em Jimi Hendrix, os quilombolas do mangue viriam liderar o levante da emancipação cultural pernambucana nos 90, fazendo justiça ao estado natal do velho desbravador Luiz Gonzaga, sempre à sombra da vizinha Bahia.

As quatorze faixas do disco mesclam coco, ciranda, soul, maracatu, hardcore e dub, em psicodelia que não desprezou o suingue. É um disco-manifesto, que tece loas à bravura de foras-da-lei (Biu do Olho Verde e Galeguinho do Coque) e a revolucionários mitológicos, como Antônio Conselheiro, Augusto Sandino e Malcolm X, pontuado por samplers estranhamente oportunos. “Da Lama ao Caos” abriu picadas importantes para a chegada de artistas inventivos como Silvério Pessoa, Jorge Cabeleira e o Dia em Que Seremos Todos Inúteis e Otto (desgarrado da mundo livre), com Chico desempenhando um papel que já fôra o de Alceu Valença em seus memoráveis anos 70. From Mud to Chaos, o baile perfumado da turma do manguebeat.

Milton Nascimento - "Clube da Esquina 1"



Clube da esquina é um disco seminal da música brasileira, um retrato fiel do quão grandiosa é a obra de Milton Nascimento produzida na década de 70. O melhor cantor brasileiro de todos os tempos, junto a letristas em verdadeiro estado de graça – Ronaldo Bastos, Márcio Borges e Fernando Brant -, e mais um trem de músicos extraordinários (Toninho Horta, Wagner Tiso, Robertinho Silva, Beto Guedes etc.), todos prestes a conquistar o direito sagrado à carreira-solo, fizeram de Clube da esquina um álbum cultuado no mundo inteiro.

Espécie de celebração a céu aberto promovida em torno da musicalidade de Milton, este disco nascido à beira-mar num recanto de Piratininga, no litoral do Rio de Janeiro, reúne algumas das principais composições de Bituca, como Cais, San Vicente, Nada será como antes e Clube da esquina n°2, bem como de Lô Borges, promovido a co-autor do disco pela generosidade ímpar do artista carioca, crescido em Três Pontas.

Dentre as 21 canções do álbum duplo há desde o samba, em encontro arrebatador de Milton e Alaíde Costa em Me deixa em paz, de Monsueto e Ayrton Amorim, até o rock inspirado no quarteto de Lennon & McCartney, perceptível na balada Paisagem da janela, de Lô e Brant. Em Dos cruces, Milton reafirma toda sua latinidade em interpretação impecável de voz e violão do bolero do espanhol Carmelo Larrea, enquanto Lô confere com seu canto frágil, mas oportuno, ares de contemplação à inebriante Um girassol da cor de seu cabelo, obra-prima composta com o mano Márcio, em arranjo inesquecível de Eumir Deodato.

A capa fotografada por Cafi, com dois meninos que personificam os protagonistas da já clássica Morro velho, selava a genialidade do LP. E Milton Nascimento não precisava provar mais nada a ninguém.

Jorge Ben - "Samba Esquema Novo"



Batizar o disco de estréia de “Samba Esquema Novo” poderia soar pretensioso demais da parte daquele músico autodidata, egresso da periférica Zona Norte carioca e que nada tinha de virtuoso. Mas Jorge Ben possuía plena consciência de sua musicalidade e não poupou fogo na hora de encarar a Philips. Com a mesma audácia de um certo Umbabarauma, ele já havia deixado antes a Tijuca e sua turminha do barulho da Rua do Matoso (freqüentada por Tim Maia, Roberto e Erasmo Carlos) para começar a dar o que falar no outro lado do “túnel”, nas boates musicais de Copacabana. Lá mesmo, no epicentro da bossa-nova, onde a nata dos instrumentistas da cidade se encontrava religiosamente para tocar madrugada adentro.

Para gravar “Samba Esquema Novo”, Jorge recrutou alguns de seus melhores companheiros da noite como o grupo Copa 5, no qual se destacava o saxofonista J.T. Meirelles, e Luiz Carlos Vinhas e seu trio. Produzidos por Armando Pittigliani, os trabalhos no estúdio renderam um long-play que mal chegava aos 29 minutos de duração. Acontece que do repertório faziam parte “Mas, Que Nada!”, “Chove Chuva” e “Por Causa de Você, Menina”, com Jorge Ben batendo um violão cheio de suingue, percussivo, originalíssimo.

Com seu canto coloquial e letras simples em que o único cuidado parece ter sido com sua função rítmica, Jorge acabou inventando um estilo que faz escola ainda hoje, se tornando também um dos artistas brasileiros mais festejados no exterior. “Samba Esquema Novo” é o samba turbinado, que tanto pode ter feitio árabe como o do arranjo de “Rosa, Menina Rosa”, como ser puro samba-jazz. O álbum não chega a ser tão espetacular quanto “A Tábua de Esmeralda”, de 1974, nem como “Gil & Jorge” de um ano depois, mas tem importância histórica inegável. Vai para o trono!

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