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Urariano Mota, escritor e jornalista, nascido em 1950 em Água Fria, subúrbio da zona norte de Recife, onde vive. Publicou Os Corações Futuristas, Japaranduba, 49 e Soledad no Recife. Desde 2003 colabora na novacultura, na secção »literatrip« e com textos críticos. É autor do blog Sapoti da Japaranduba

 

o gênio dos livros

Tudo se passou em 1978, em Perdizes, São Paulo. A livraria ficava no meio de uma ladeira, com uma entrada para seu interior, ao qual descíamos por uns seis degraus, como quem entra num subterrâneo.

Urariano Mota, 12.01.2008

Tudo se passou em 1978, em Perdizes, São Paulo. A livraria ficava no meio de uma ladeira, com uma entrada para seu interior, ao qual descíamos por uns seis degraus, como quem entra num subterrâneo. Era entrar naquele antro e se deparar com livros, do chão ao teto, em curvas, em labirintos, em esconderijos secretos, até mesmo em portas ocultas, que se abriam pelo dom de um vendedor baixo, gordinho, que se movia perpétuo pelos títulos da Espanha ao México, do México à Argentina, da Argentina ao Brasil. Um vendedor que, não bastasse a extraordinária desenvoltura por tantas civilizações, e aqui não pensem que invento, atendia pelo nome de Virgílio. Esse homem vivamente me impressionava. Para mim, saído do Recife, de uma província em que o livro, o mais ordinário livro, tinha o peso cultural de um livro sagrado, esse homem vivamente me impressionava. Que naturalidade! Que simplicidade! Que cultura extraordinária possuía esse homem, tão baixinho no físico e ao mesmo tempo tão grande e tão alto como um moderno Virgílio, um homem que sabia todos os conteúdos e nomes de livros e autores e editoras e pronúncia na língua dos títulos e anos de edição e preços e locais e origens e países!!!

Um dos meus defeitos, ou virtudes, a esta altura da maturidade não sei, em resumo, para simplificar, uma das minhas características é não saber ocultar uma admiração. Em 1978 eu já era assim. Virgílio deve ter notado, tão transparente eu me punha em sua presença. E uma noite, antes de fechar a livraria, antes de seguirmos até a esquina para uma despedida no bar com uma mistura de cachaça e cinzano, ele quase me põe a ponto de arrebentar pelos poros de tanta admiração. Pois me disse:

- Eu sei onde está qualquer livro nesta livraria. Qualquer um. No escuro.

O acervo da livraria estava entre os grandes de livrarias de São Paulo. Não lhes digo o número de exemplares, porque isto me obrigaria a malabarismos de memória e de estimativa. Mas se vocês já viram indivíduos que decoram todos os números e assinantes de uma lista telefônica de uma grande cidade, poderão dar algum crédito a minhas palavras. Porque lhes digo que Virgílio me disse:

- Peça qualquer livro, qualquer um, que eu apago a luz, e com a livraria no escuro, eu encontro o livro.

- Traga-me O Capital.

- Siglo XXI ou Grijalbo?

Ele me trouxe, em poucos minutos, sorridente, o que eu lhe pedira. E lhes asseguro que fez sua busca no escuro, porque na porta da caverna eu o esperava. E com isto me deixou literalmente sem palavras. Os volumes que me exibia não estavam antes com ele, com absoluta certeza, até porque entre as suas habilidades intelectuais não estava a adivinhação. Fiquei sem palavras. Pior, ou melhor, para ele, com a cara de um camponês que acabara de ver a pessoa de Nossa Senhora de Fátima: Virgílio a sair do escuro com O Capital e a Era das Revoluções.

Saímos, fomos até a esquina. E me pus então a estudar em silêncio o fenômeno, a estudá-lo com uma cara de idiota, porque ele me disse:

- Pergunte, que eu respondo.

- Virgílio, você sempre gostou de ler?

- Sempre, muito. Eu gosto muito de ler.

- Quando você sai daqui, você mergulha nos livros...

- Depois do bilhar. Primeiro o bilhar, depois a leitura. Isto pra mim é sagrado.

- Sei... o que você mais gosta de ler?

- Eu adoro o Tio Patinhas.

Somente não caí por força da mistura de cachaça e vermute. Um de nós dois seguramente devia ser idiota. E Virgílio sabia, com toda certeza, que o idiota era quem tinha essa cara. Eu.

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