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Urariano Mota, escritor e jornalista, nascido em 1950 em Água Fria, subúrbio da zona norte de Recife, onde vive. Publicou Os Corações Futuristas, Japaranduba, 49 e Soledad no Recife. Desde 2003 colabora na novacultura, na secção »literatrip« e com textos críticos. É autor do blog Sapoti da Japaranduba

 

Paulo Coelho ganha o Nobel da Literatura

Onde se conta o que a imprensa brasileira não queria, não desejou, até o último instante

Urariano Mota, 12.10.2008

O escritor ainda não havia acabado a sessão de arco e flecha.

Repórteres invadem o campo onde se localizam o alvo, o autor e o arco. A notícia já correu o mundo, desde a madrugada. The Guardian, The Times anunciaram em primeira mão: o escritor Paulo Coelho, um dos mais importantes autores de língua inglesa do século, é o vencedor do Prêmio Nobel de Literatura de 2009. E mais: “a Academia sueca, que decide quem vai receber o prestigioso prêmio de US$ 1,5 milhão, fez o anúncio neste sábado, descrevendo Mr. Coelho como um ‘autor de épicos sobre a experiência mística, que, com fervor e poder visionário, expôs uma civilização dividida entre o ser e o pós-ser’”. Não importa mesmo procurar saber o que isso quer ou pretende dizer. O importante é saber que mais um escritor em língua inglesa, com o devido respeito pelo país de origem do Senhor Coelho, conquista o prêmio máximo da literatura no universo. Os brasileiros, ainda mal inseridos no mundo globalizado, bem que tentam repor o Nobel em seu lugar de origem.

O Globo, após alguns salamaleques de ofício à civilização inglesa, ousa insinuar que Paulo Coelho é brasileiro, da cidade do Rio de Janeiro, com residência física em Copacabana. Mas que, bem, a julgar pela qualidade de suas traduções para o “idioma de Shakespeare”, é compreensível que o novo, quem sabe, Sir, divida as honras com o império onde outrora o sol jamais se pusera. A Folha de São Paulo, em sua natural objetividade, exclama que o autor Paulo Coelho é tão bom, que mais deveria ser dito que ele está em um patamar além-Brasil. Ou, para bom entendedor, em Londres, of course. Um pouco antes deste prêmio consagrador, os críticos literários da Folha haviam escrito que para o Senhor Paulo Coelho, em lugar de um patamar, o mais próprio seria um patíbulo. Mas agora tudo é diferente. Como não podem dizer de Coelho o mesmo que disseram o ano passado, quando Doris Lessing foi premiada, a saber:

“.... sempre desconfiou de pernas peludas. Foi casada, sim, mas não recomenda a ninguém o uso de alianças. É alérgica. O carnê dourado (1962), que lhe abriu as portas do mundo literário e do mercado, explica as razões. Nele, a protagonista Anna Wulf é uma espécie de alter ego, louca para ser livre, mas presa a convenções e a um sentimento de culpa ancestral. Algo esquerdista, cheia de dúvidas e vivendo com sua filha numa Londres do pós-guerra....”,

dizem:

“Os seus livros trazem um resumo da filosofia de vida de Coelho e são baseadas nas histórias e fatos de diferentes culturas e partes do mundo. As Valkírias, por exemplo, conta a história real de um homem e uma mulher que vão para o deserto e - sem utilizar qualquer recurso artificial ou sofisticado - decidem entrar em contacto com o Anjo da Guarda. No estilo que o consagrou como escritor mais lido desta geração....”.

Ou seja, em um comportamento modelar, porque se repete em toda a imprensa, cambiam o não se deve ler (porque jamais li) por um incesto entre releases da editora e um envergonhado ufanismo. Até mesmo o português dos livros de Paulo Coelho, que longe está de ser o da chamada norma culta, escrito em um estilo que jamais receberia o aval do Padre Vieira, passa a ser elogiado pelas excelentes traduções que recebe na língua do King James.

Há o fato. Paulo Coelho é o autor brasileiro – natural do Brasil - mais lido em todo o mundo. O Alquimista é um dos mais importantes fenômenos literários do século XX e XXI. Chegou ao primeiro lugar na lista dos mais vendidos em 20 países, e vendeu, até 2008, 40 milhões de exemplares. A biografia de Coelho foi vendida para editoras em Frankfurt antes mesmo de concluída. Existe agora o fato maior: o Nobel de Literatura 2009 é dele. Por isso os editores dos periódicos põem-se à caça do Nobel japonês Kenzaburo Oe, urgente, para arrancar dele frases de sagração, como antes ele dissera: “Paulo Coelho conhece o segredo da alquimia literária". Os textos sobem a página com destaques do gênero “Paulo Coelho é um dos cinco autores mais vendidos do mundo. Mas em vez de oferecer aos leitores relatos aliciantes de violência, sexo ou suspense, Coelho escreve acerca de pessoas normais que se colocam em situações extraordinárias com a finalidade de incentivarem o seu eu interior, e fá-lo com uma prosa simples e despretensiosa." Ora, que tesouro tínhamos e não sabíamos antes.

Por isso agora os repórteres cercam o mago, que mal teve tempo de pôr de lado o seu grandioso arco. Eles vêm em horda, simpáticos, cordiais, íntimos, íntimos como só os repórteres conseguem ser.

- É verdade que escreveu O Alquimista em quinze dias?

- Sim. Todos os meus livros são escritos num período de duas a quatro semanas.

- Você recebe... algum espírito?

- Escute. Escrevo. Mas levo no mínimo dois anos pensando. A revisão dura mais uns quatro meses.

- Os fatos narrados em As Valkírias são reais?

- Que fatos?

- Aqueles... pra dizer a verdade, o editor me mandou fazer a pergunta.

- O episódio mais importante, o encontro com o anjo, aconteceu realmente.

- Como é o anjo?

- Tem asas.

- O que faz um Nobel de literatura?

- Escreve.

- E que mais?

- Bebe, come... e transforma o que come em coisas menos nobres.

- O senhor conseguiu o Nobel aos 62 anos. Cedo, não?

- Eu deveria esperar meus 87?

- Em O demônio e a srta. Prym, o senhor responde à pergunta o homem é bom?

- Eu não sei. O repórter é bom?

- Como, senhor?

- Essa pergunta não tem resposta. Um anjo e um demônio estão sempre do nosso lado....,

- O senhor é um anjo?

- ... o que irá se manifestar é aquele que escutamos mais....

- O senhor é um anjo?

- É melhor prestar atenção ao que estou dizendo.... O livro mostra este duelo, e mostra também como a sociedade pode manipular o conceito de "bondade".

- Que livro?

- ......

- O senhor é um demônio? (Outras vozes) O senhor é alquimista? O senhor é autobiográfico?

- Acredito no conceito de "Anima Mundi"...

- Imundo?

- ...Alma do mundo.... cada pessoa, através da total dedicação ao que faz, entra em contacto com a inspiração do universo - e é daí que vêm os meus personagens

- Isso dá muitos dólares, não dá?

... do amor pela vida e pelas coisas que vivo.

- Vários de seus livros são narrados do ponto de vista feminino. Como um homem
consegue retratar tão fielmente as mulheres?

- Quando escrevo um livro estou sobretudo tentando resolver algo comigo mesmo.

- O senhor é gay? Perdão. O senhor teve experiência gay?

- ...Eu preciso me entender e achei na literatura a melhor maneira de fazer exatamente isso. Eu sou os meus personagens e eles encarnam meu espírito. Se consigo então escrever do ponto de vista de mulheres é que deixo meu lado feminino se expressar sem entraves.

- Quais são seus autores preferidos?

- J.L Borges, William Blake, Jorge Amado, Henry Miller.

- Só?

- Que livros a senhora já leu de Paulo Coelho?

- Muitos. O Alqumista. O Bruxo....

- Entendo. Do quê a senhora gostou mais no livro O Bruxo?

- Ah, tudo, não é?

- Maravilha.

- O senhor sabia que o publicitário Olivetto declarou que o senhor é a nossa Coca-Cola?

- Lindo. E qual o slogan, eu poderia saber?

- Paulo Coelho é que é.

O escritor, como um guerreiro da luz, então pega o arco e a flecha. Os repórteres, ainda que não tenham lido a Odisséia, e por isso, portanto, olvidem a volta de Odisseu ao palácio, os repórteres ainda assim recuam e abandonam o campo. A prudência é que é.

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