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18.05.2010

A delicadeza do indivisível
Zélia Fonseca: Ímpar


»Ela seria fluida durante toda a vida. Porém o que dominara seus contornos e os atraíra a um centro, o que a iluminara contra o mundo e lhe dera íntimo poder fora o segredo«.
(Clarice Lispector)


A compositora e violonista Zélia Fonseca deve ser louca de não ter mais pedra nem reza. Pois não há pensamento mais sensato que esse ao findarmos a audição do »Ímpar«, esse disco que marca o início de sua viagem solo.

Falo da voz e do canto de Zélia, que esteve durante todo esse tempo escondido de nós, esperando sabe-se lá o que para germinar frondoso, assim como agora.

Zélia fazia mais ou menos o papel da Dona Discrição quando estava no palco ao lado de Rosanna Tavares, a fiel companheira de quase três décadas, nascida também nas Minas Gerais, que cantava – luminosa, meiga e cativante – os sentimentos da dupla tornados música.

Foram quatro discos com ela produzidos na Alemanha, o país que as acolheu em 1993, e onde vinham traçando uma bem sucedida carreira que as levou inclusive ao respeitável selo Enja Records e a tocar com nomes como Dino Saluzzi, Howard Levy e Katharina Franck. Foram centenas de concertos por lá, assim como na Finlândia, França, Canadá e Portugal, num trajeto que só estancou por ordem do destino, que levou Rosanna embora  em outubro de 2006.

»Ímpar« é um álbum que comove por seu teor de verdade, esboçado em delicadas melodias criadas por Zélia e seus versos em tom de confissão. Existencialista da primeira à última faixa, ele é o registro de uma artista em momento especialíssimo: depois do embate com a fatalidade da morte da amiga, a renovada constatação da força de sua música. O reencontro com a eternidade no além das coisas mundanas. A auto-redescoberta de Zélia Fonseca como cantora de timbre denso e profundo, ela que já soltava a voz nos primórdios da carreira da dupla, na época dos shows em bares de Belo Horizonte, talento que depois preferiu esconder, limitando-se aos backings para a frontwoman Rosanna.

»Ímpar« surpreende pela poesia de um samba como »Sobre o Amor«, escrito por Zélia,  elegante e de linhagem filosófica como tantos de Paulinho da Viola, e que traz  versos como »amar é bom pro equilíbrio/ e pra tombar de tonteira/ reconhecer limites/ ou deixar a vida sem beira«. É um álbum que permanece impactante do começo ao fim e que encontra seu ápice na comovente »Prece«, parceria de Zélia com Rosanna Tavares, composta pouco antes do falecimento de Rosanna. Uma delicada oração a São Francisco que não comete tristeza exagerada, tampouco auto-piedade,  em sua forma afirmativa diante dos encantos de estarmos vivos.

»Luarmina e a Ilha« é uma espécie de segunda parte da canção »Luarmina e o Mar« que constava no quarto disco da dupla, o »Águas Iguais« de 2004. Uma música que guarda sutil relação com o universo do romance de Moacir C.Lopes »A Ostra e o Vento«, que foi levado às telas brilhantemente pelo cineasta Walter Lima Jr em 1997. Mais uma vez, o lado mágico da vida, com ares de lenda, se impondo à perda maior do desamor.

Em »Sentinela« temos uma introdução que se parece com a sonoridade das invenções instrumentais do grupo mineiro Uakti. Aliás o próprio título da música nos sugere Milton Nascimento, mas a canção toma outro rumo, original. Por sinal, Minas Gerais irrompe aqui e ali, com suas digitais geográficas, como no cântico que abre a já citada »Prece«. Em »Desoriente«, Zélia Fonseca reafirma sua disposição a »mandar a saudade embora, que alegria vence a dor«, sem no entanto se esquecer de escutar o que a dor tem pra contar. Em »Vigia«, a melodia faz o disco respirar em sua inclinação reflexiva, com acompanhamento musical de refinado bom gosto.

Gravado entre fevereiro e maio de 2009 no estúdio Zerkall pelo prestigiado produtor musical e engenheiro de som alemão  Walther Quintus, »Ímpar« é dentre todos os discos já lançados por Zélia Fonseca o de melhor sonoridade. Há quem diga inclusive que é o melhor disco feito por ela . Os músicos que a acompanham nesse vôo solo também souberam perceber toda a sutileza das onze canções do disco, até porque dois deles faziam parte da banda de apoio de Rosanna & Zélia: a incrível baterista e percussionista Angela Frontera e o saxofonista Márcio Tubino, dois brasileiros também radicados na Alemanha. Outro instrumentista brazuca que atua no disco é o violonista João Luís Nogueira, com quem Zélia compôs a faixa-título, outro bom momento do álbum. Dentre os alemães, destaca-se o guitarrista Michael Koschorreck, integrante da popular banda de pop-rock alemã Söhne Mannheims.

»Ímpar« marca a maravilhosa estreia solo de uma cantora e compositora que os brasileiros precisam conhecer. Uma artista que resolveu se assumir de vez como cantora, decisão que só nos resta aplaudir por tudo que tem de grandeza e coragem.

Felipe Tadeu

 

Zélia Fonseca:
Ímpar
Enja Records, 2010

 

Links:
http://www.myspace.com/zeliafonseca

http://www.rosanna-zelia.com/