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Felipe Tadeu é jornalista especializado em música brasileira, produtor do programa radiofônico Radar Brasil (Rádio Darmstadt). Radicado na Alemanha desde 91, o autor é também conhecido como DJ Fila. Na novacultura assina a coluna »o som do brasil«


 

 

Olivia Byington - Lady Jane no outono alemão.

Uma das cantoras mais especiais do Brasil vem cantar na Alemanha. Pronta para surpreender.

Felipe Tadeu, 28.12.2007

Eu sou um cara que costuma dar sorte com os vizinhos. Quando eu morava no Liége Tijuca, no apartamento de meus pais no Rio de Janeiro, que me abrigou por longos 25 anos, tinha um que morava no 105 e que se chamava Marco Brasil. Marco era da minha idade, mas àquela época ele andava muito mais curioso do que eu, em termos de conhecimentos musicais. Com apenas treze anos, ele já curtia discos do Triumvirat, um grupo de rock progressivo aqui da Alemanha, gostava de Azymuth e do som de uma dupla chamada Burnier & Cartier, que eu vivia escutando do chuveiro do nosso 306. "Foram pra São Paulo pra fazer dinheiro/ tava na cara ficaram nus, ficaram nus...", dizia a música mais legal deles, a "Ficaram Nus". A canção vinha do primeiro andar, claro. Lá estava o Marco brasileiro botando suas bolachas pretas pra rolar na sua pick-up turbinada.

Marco é desses amigos-vizinhos que a gente não esquece. Quem mais poderia ter me apresentado o álbum "Minas", de Milton Nascimento, senão ele? Foi junto com o Marco também que ouvi pela primeira vez o "Wish You Were Here", aquele discaço sensacional do Pink Floyd, que fazia a cabeça de um garoto como eu que, até então, nunca tinha experimentado erva alguma. Ah, e outro trabalho que me deixou bastante abismado com tamanha estranheza foi "Durante o Verão", da A Barca do Sol.

A Barca do Sol, a mesma que o desenhista Carlos Pertius (descoberto pela doutora Nise da Silveira, do Museu do Inconsciente) deve ter visto passar no horizonte (e que depois virou uma obra fascinante dele)-, fazia um tipo de rock que eu nunca tinha ouvido igual. Gostei da banda logo de cara, mas eles eram um grupo raro demais, raríssimo: era difícil encontrar um lp deles nas lojas. Shows deles,então, nem se fala.

Até que um dia, ao abrir o jornal do meu bom pai, que era vascaíno doente e se interessava mais pelas páginas de esporte do que pelos cadernos culturais, e me deparei com uma garota muito bonita que estava lançando seu disco de estréia, acompanhada pela Barca do Sol. Era Olivia Byington, que acabara de gravar "Corra o Risco", um álbum repleto de canções assinadas por integrantes da Barca, como Nando Carneiro, Muri Costa, Beto Resende e Jacques Morelembaum (sim, ele mesmo).



Um dos lances que mais me atraía nos discos do grupo eram as letras de Geraldo Carneiro, todas muito originais, de temáticas mágicas, líricas, modernas, de um poeta sem parentesco algum com qualquer letrista brasileiro. Junto com o maninho dele, o Nando, os dois faziam coisas que não estavam no mapa nem dos piratas. "Ouço os clarins na noite negra/ acho e capturo o mal da noite/ paro e me despeço do futuro./ Do pó rodando pela estrada/ O grito na garganta/ Os olhos na navalha./ O aço brilha no escuro.", dizia uma das parcerias deles,"Brilho da Noite", rascante como os tempos do obscurantismo da ditadura militar. Era música das boas, daquelas que deixam tudo em aberto, para o ouvinte fazer o seu próprio corte.(E eu penso: por que Cássia Eller também não gravou isso?).

Aquela Olivia ali já me deixou atento na segunda linha da reportagem do jornal do meu pai Sérgio. Nome bonito o dela também, igual ao de minha avó, a que eu não conheci. Se eu tivesse uma filha, ela seria assim também: Olivia. E Isabella, se fossem duas.

Mas até que o disco "Corra o Risco" caísse finalmente na roda das minhas amizades, em 1981, eu já estava com meus dezenove anos. A partir daquele momento, todas as outras cantoras que habitavam o meu quarto - Gal, Janis Joplin, Annie Haslam (do grupo de rock britânico Renaissance), Rô Rô, Joyce e Mercedes Sosa - seriam deslocadas em meu eixo sentimental. A garota que aceitava correr riscos libertando os versos de Geraldo Carneiro, de João Carlos Pádua e de Cacaso, elevava as canções da Barca às constelações mais inimagináveis, com seus doces agudos, seu vigor rock, sua sutil melancolia e seu charme de bad girl apaixonada. Não era assim que ela soava em "Luz do Tango", parceria de Geraldo Carneiro e Astor Piazolla (sim, ele mesmo)? Ou em "Anjo Vadio", composta por ela mesma e por Geraldo?

O "Corra o Risco" de Olivia acabou entrando direto numa fitinha cassete que eu tenho até hoje e que eu levava junto comigo, na minha mochila, sempre que ía acampar com os amigos. Fazíamos audições incríveis na beira de cachoeiras, sentados debaixo de uma árvore, ou em pose de reis lagartos, prostrados ao sol, curtindo músicas como "Fantasma da Ópera", "Lady Jane", "Jardim de Infância" e a não menos linda "Água e Vinho" de Egberto Gismonti, com letra de Geraldo. Éramos eu, Xandy Rocha (hoje, um ótimo baixista) e Beto Braga, dentre outros mais chegados. Nos reuníamos em Fragoso, em Visconde de Mauá, em Lumiar, ou mesmo na casa/estúdio deles no Grajaú, e ficávamos escutando o que era bom. Era muita diversão, e muito aprendizado também.



Olivia Byington continuou sendo uma grande referência emocional para mim. Ela, que começou no rock, enveredou pela chamada mpb e por cancioneiros menos previsíveis com uma desenvoltura impressionante, encarando um repertório que só seria compatível sob interpretação dela: o Assis Valente de "Uva de Caminhão", a canção cubana "Yo Digo que las Estrellas" de Silvio Rodrigues - uma preciosidade imensa na voz da cantora carioca -, ou no poema "Desassossego" de Fernando Pessoa, musicado por ela e pelo saxofonista Edgard Duvivier, seu ex-marido, com quem fez um álbum de grande delicadeza, o "Melodia Sentimental", de 1987.

Dez discos depois de sua estréia na carreira, ocorrida há exatamente trinta anos, Olivia Byington continua apostando no esmero da arte de cantar, lapidando canções que passam despercebidas pelos outros artistas, tudo com a mesma motivação de outrora. Hoje, ela se dá ao luxo inclusive de compor, com regularidade ainda maior, suas próprias músicas. Olivia, discreta, vai escrevendo a sua história, para aqueles que merecerem conhecê-la.

Pois bem, Frau Byington, seja benvinda à Alemanha!

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